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Poesias à margem

Conheça o Slam Marginália, grupo de poesia falada composto por pessoas trans e não-bináries

por Alexandre Makhlouf 5 mar 2021 01h41
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(Clube Lambada/Ilustração)

ão Paulo, 5 de setembro de 2018. Largo São Bento, em frente ao Mosteiro. Desde essa data, o endereço, conhecido do centro da capital paulista, não era apenas um ponto turístico. Pelo menos às primeiras quintas-feiras do mês, quando se reuniam ali os artistas do Slam Marginália, grupo de poesia falada composto por pessoas trans e não-bináries. Organizado atualmente por Abigail Campos Leal – a Bibi –, Carú de Paula, Uarê e Preto Theo, o coletivo fez mais do que espalhar rimas sobre as vivências de corpos dissidentes. O Marginália, como seus integrantes chamam a iniciativa, também criou uma rede de afetos, de amor, de referência e de oportunidades – inclusivo financeiras – para pessoas T. “No fim das contas, não era só de dispor nossa palavra, jogar nossa poesia para a coletividade que a gente tinha fome. Também tínhamos fome de trocar afeto, carinho, e de ganhar uma grana”, conta Bibi.

A pandemia, claro, interrompeu as edições presenciais do Slam Marginália, que digitalizou parte dos seus encontros em lives e em outros projetos junto à Secretaria de Cultura de São Paulo, como o zine “Revidar”, que debate os limites e a importância do autocuidado e da saúde mental, especificamente das pessoas trans racializadas, em textos, colagens, fotos e outras intervenções artísticas. “O Marginália é uma questão de saúde também e esse fanzine dá pistas a partir das produções de cada um que se colocou ali. Como construir processos de cuidado para além do individual. Não é à toa que veio no momento que veio, inclusive abrindo novas possibilidades para a gente, porque não dá pra ficar fazendo slam online o tempo inteiro, é enlouquecedor. Se as pessoas brancas, cis, hétero se dispõem e tem corpo e saúde mental para fazer mil lives, isso não é uma realidade nossa. Fazer live pra gente implica em ter tempo e, tempo, pra nós, é mais do que tudo dinheiro, saúde, se manter vivo”, explica Carú.

Bati um papo com Bibi e Carú sobre os próximos passos do Marginália, suas vivências durante a pandemia, a importância da conscientização e envolvimento das pessoas cis na luta trans e, claro, poesia. O resultado você confere aqui embaixo:

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(Luca Meola/Fotografia)
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Como surgiu o Slam Marginália?
Carú: A primeira edição do Marginália aconteceu no dia 5 de setembro de 2018. A gente escolheu o slam porque era uma possibilidade para a gente no contexto de poesia em que nos conhecemos, especificamente na batalha Dominação, que acontecia no mesmo lugar que acontecia o Marginália, em frente ao Metrô São Bento. Passamos a perceber as necessidades de fazer um espaço de encontro de corpos trans e de experimentação artística do que a gente pode – e o slam nos ofereceu tudo isso, também articulando com a potência da poesia, algo que atravessava todo mundo ali. Hoje, somos 4 – já fomos 7, mas não acho isso ruim, acho normal das coletividades.

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(Luca Meola/Fotografia)

Bibi: A gente já atuava em uma cena artística da palavra que acontecia em São Paulo. Frequentava o TransSarau, alguns slams, algumas batalhas, mas esses espaços eram muito restritos. Às vezes, a gente ficava rimando fora dos eventos porque sentia necessidade de escoar essa vazão poética. Quando entrávamos em alguns slams, sentíamos que faltava escuta de jurades, organizadores. Na Dominação, tinha muito mais acolhimento, mas ainda assim sentíamos a necessidade de ter algo específico para as pessoas trans e desertoras de gênero no geral. A partir disso, começamos a nos articular para criar um slam com várias das nossas pessoas, e isso se tornou o Slam Marginália. A principal e primeira motivação era ter um espaço coletivo para dar vazão pra nossa criação artística, poética, da palavra, já que em outros espaços e slams não sentíamos nossas demandas acolhidas. 

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(Luca Meola/Fotografia)

E esse objetivo principal foi cumprido?
Bibi: Foi, mas a coisa cresceu e ficou muito maior. Percebemos, logo nas primeiras edições, que era além da dimensão artística. Vimos redes de afeto se construindo, redes de amor, tudo isso com o slam como pano de fundo. Redes inclusive econômicas se construindo, pessoas que vendiam produtos em banquinhas, comidas, que trazem suas artes para vender. O Marginália, no fim das contas, foi tomando uma outra dimensão porque não era só de dispor nossa palavra, jogar nossa poesia para a coletividade que a gente tinha fome. Também tínhamos fome de trocar afeto, carinho, e de ganhar uma grana.

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(Luca Meola/Fotografia)

Carú: Uma coisa que eu acho sempre importante dizer é que o Marginália surgiu em 2018, um cenário político horrendo – já era horrendo há séculos, mas ficou pior. O Marginália tomou outra proporção porque, primeiro, era um evento mensal: toda primeira quinta-feira do mês, as pessoas sabiam que estaríamos naquele espaço e que aquele espaço viabiliza muitas coisas, como redução de danos, em que atuamos mesmo, ainda que de forma orgânica. O Marginália não é só quem organiza, mas também quem vai, quem mantém aquilo vivo. O assunto redução de danos surgiu muito forte e fizemos parcerias com coletivos que se preocupam com isso. A maior sacada do Marginália foi viabilizar essas coisas em espaços em que elas já aconteciam de fato. Se você chega lá com seu brechó, seu zine, tem gente comprando e gente que você sabe que está interessada. Criou-se ali uma noção de comunidade. Começamos a conseguir fazer o dinheiro girar, que essas pessoas tivessem acessos a mais insumos pra usar seu pó, sua maconha, transar com segurança, beber água potável. Tudo isso são coisas que a gente entende que o Marginália não só vira um espaço de encontro para pessoas trans, mas também para que se fortaleçam. E, para se fortalecer, inevitavelmente a gente precisa atuar em várias coisas que levam nossa população aos lugares de marginalidade, entendo o Marginália também como um espaço de cuidado e de carinho. Para além de serem vários corpos trans se encontrando na frente do Mosteiro, a gente constitui ali junto outra noção de construir mundo – sendo bem otimista (risos).

“Percebemos, logo nas primeiras edições, que era além da dimensão artística. Vimos redes de afeto, redes de amor, e também redes econômicas se construindo. Pessoas que vendiam produtos em banquinhas, comidas, que trazem suas artes para vender. No fim das contas, não era só de dispor nossa palavra, jogar nossa poesia para a coletividade que a gente tinha fome. Também tínhamos fome de trocar afeto, carinho, e de ganhar uma grana”

Bibi Campos Leal
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(Luca Meola/Fotografia)

Teve uma motivação política incluir “marginal” no nome do grupo?
Bibi: Pensamos muito tempo na criação do nome, é sempre difícil batizar alguma coisa. O nome Marginália nos pareceu mais aberto, mas obviamente relacionado a esses corpos que habitam a margem da heterossexualidade compulsória e do binarismo de gênero, especificamente pessoas trans e não-bináries. Mas sem esquecer da fauna um pouco maior e mais ampla que habita esse lugar: bichas afeminadas, sapatão caminhoneiras, drags, pessoas que habitam esse terreno que é de uma marginalização. Marginália também não está totalmente associado à identidade trans, então engloba mais dessas dissidências de gênero. Descobrimos depois que existe uma certa tradição de combate, talvez, mesmo que no campo literário, que passa pelo uso dessa palavra. Mário de Andrade, uma pessoa racializada, preta, bicha, também usava essa palavra. Lima Barreto, escritor preto colocado no manicômio, também usou. Isso foi um grato encontro não intencional, mas que fez com que a gente se associasse a uma marginalidade histórica.

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(Luca Meola/Fotografia)

Vocês foram convidades pela Secretaria de Cultura de São Paulo para fazer uma curadoria de shows e talks em fevereiro. Isso foi muito bacana! Que outros projetos desenvolveram nos últimos tempos?
Bibi: Em função da quarentena, por mais que pareça pouco, estávamos tentando não enlouquecer e não morrer. Mas fizemos algumas outras coisas importantes: a convite da Bárbara Esmenia, uma programadora do SESC, criamos uma revista digital chamada Revidar, em que a ideia é debater os limites e a importância do autocuidado e da saúde mental, especificamente das pessoas trans racializadas. É uma revista digital com poesias, colagens, fotos, com várias pessoas trans, pretas, indígenas do Brasil, tudo disponível online. Também fizemos uma série de slams, todos digitais.

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(Luca Meola/Fotografia)

Carú: A Revidar é uma das produções mais importantes do Marginália. Quando recebemos o convite, ele veio junto de uma pergunta: autoamor dá conta? O Marginália, não no âmbito da razão e da consciência, já surge por uma demanda que mostra que só o autoamor não dá conta. A saúde mental e o cuidado no geral são pensados sempre a partir do indivíduo, e nossas corpas trans racializadas já denunciam que a coisa não funciona dessa forma. Não à toa, a gente vai construindo espaços para se fortalecer, porque sozinho realmente não dá, não é uma questão só do campo individual. O Marginália é uma questão de saúde também e esse fanzine dá pistas a partir das produções de cada um que se colocou ali. Como construir processos de cuidado para além do individual. Não é à toa que veio no momento que veio, inclusive abrindo novas possibilidades para a gente, porque não dá pra ficar fazendo slam online o tempo inteiro, é enlouquecedor. Se as pessoas brancas, cis, hétero se dispõem e tem corpo e saúde mental para fazer mil lives, isso não é uma realidade nossa. Fazer live implica em ter tempo e, tempo, pra nós, é mais do que tudo dinheiro, saúde, se manter vivo. O Marginália, nesse contexto, vem recriando possibilidades de estar também, dentro dos limites que podem os nossos corpos.

Bibi: A quarentena foi muito pesada pra gente. Ela não trouxe nada de novo, só radicalizou elementos que já existiam na vida das corpas trans. O isolamento social, não poder sair de casa, a dificuldade de encontrar empregos e outras fontes de renda, a consequência dos adoecimentos psíquicos e afetivos que decorrem disso… Foi muito complicado. Logo no começo, perdemos um amigo muito próximo, o Demétrio Campos, por suicídio, e isso abalou muito a nossa comunidade. Aí a gente se focou no contexto de priorizar o nosso cuidado. Entendemos instintivamente que não tinha condições de manter um ritmo acelerado – inclusive porque a própria pandemia demandou da gente e do mundo um desaceleramento. Consequentemente, conforme as coisas foram melhorando um pouco, a gente foi se reabrindo para tentar fazer algumas atividades, até porque isso tinha que acontecer em algum momento, né? A gente não se rendeu a nenhuma demanda externa, looping de live ou ter periodicidade. Focamos mais na gente e em tentar atravessar esse fim do mundo.

“Se as pessoas brancas, cis, hétero têm corpo e saúde mental para fazer mil lives, isso não é uma realidade nossa. Fazer live implica em ter tempo e, tempo, pra nós, é mais do que tudo dinheiro, saúde, se manter vivo”

Carú de Paula
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(Luca Meola/Fotografia)

Quais projetos o Slam Marginália vai desenvolver daqui pra frente?
Bibi: A gente passou num VAI [Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais, da Secretaria de Cultura de São Paulo], estamos para começar as atividades, e isso tá rolando. Ainda não podemos contar muita coisa, mas esse ano a gente tá vindo com muito mais energia para conseguir tocar as atividades e isso passa necessariamente por retomar esse lugar que a arte tem na nossa vida, no sentido de produzir, de ser algo que é parte da nossa existência. Mas passa também no sentindo de produção de uma materialidade de vida, conseguir um acué [dinheiro]. O Marginália sempre teve esse objetivo, todo mundo sabe que a população trans é excluída e sitiada do campo do trabalho – 90% está no tráfico ou na prostituição – e nós sempre tivemos esse caráter de, através da arte, produzir fonte de renda para pessoas trans, nem que sejam apenas as do nosso contexto mais próximo. 

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(Luca Meola/Fotografia)

Carú: Faço minhas as palavras da Bibi. E queria completar que: não há mais condições de o Marginália pensar estar nesse mundo sem que haja negociações com retorno financeiro de alguma ordem para os corpos. No sentido de fazer esse dinheiro chegar nesses corpos trans. É mais do que uma demanda, é uma necessidade. Pensando que a pandemia inviabiliza muitos trabalhos no campo externo, na esfera pública, aumentando a nossa vulnerabilidade, o Marginália vem para 2021 com essa perspectiva. O dinheiro da cultura gira majoritariamente entre corpos cis e brancos, então isso é mais um jeito de que isso seja desterritorializado e chegue na gente, gire entre a gente. O Marginália tem uma potência, no meu entendimento, de abrir esse espaço e torná-lo cada vez mais largo. E também de que o Marginália não seja só a linha de frente, mas que, dele, a gente consiga projetar cada vez mais corpos nesse contexto, que as pessoas conheçam esses poetas, que esses corpos ganhem visibilidade independentemente do Marginália. Que, além de um espaço de cuidado, seja um espaço de projeção.

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(Luca Meola/Fotografia)

É realmente fundamental que as pessoas mudem a forma de enxergar essa questão financeira mesmo…
Bibi: Sobre essa necessidade material das pessoas trans, você que tá aí, lendo essa entrevista, se implique com a existência de corpas trans, especialmente as racializadas. Contratem a gente, divulguem o nosso trabalho, se impliquem e se afetem pelas coisas que a gente fala, escreve, pinta, com tudo que a gente produz. Cada vez mais, é necessário que a cisgeneridade se implique no apoio à vida das pessoas trans. Não basta que só as pessoas trans defendam suas vidas, a cisgeneridade precisa rever seus privilégios também.

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(Luca Meola/Fotografia)

Carú: As nossas produções são boas porque somos boas no que a gente faz, não só porque somos trans. Pessoas cis lendo isso: disponham-se a se afetar pelos nossos trabalhos como se dispõem a se afetar para outros conteúdos. Se você se dispõe a conhecer o que outro corpo cis faz apenas pela existência dele, disponha-se da mesma forma com o nosso trabalho. Porque o que a gente faz é tão bom quanto – ou até melhor.

Bibi: E valorizem a gente em vida. Quando tomba um, todo mundo adora compartilhar travesti morta e homem trans suicidado. A gente precisa desse apoio em vida.

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