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Muito além do gozo

Mulheres narram suas descobertas sexuais e como conseguiram fugir do roteiro que ainda privilegia o prazer masculino na cama

por Carol Ito 30 nov 2020 01h38
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(Clube Lambada/Ilustração)

ulheres avançam no mercado de trabalho, reivindicam maior presença em cargos de liderança, no debate público, na chefia da casa. Mas essa autonomia nem sempre se reflete entre quatro paredes, principalmente, quando se trata de relações heterossexuais. Para muitas, o sexo parece confinado em um roteiro previsível, que tem a penetração e o orgasmo masculino como o ponto de chegada, a cereja de um bolo que nem sempre é tão macio, molhadinho e gostoso como deveria. Mas por que ainda é difícil protagonizar o próprio prazer na cama? Por que mulheres ainda estão reivindicando o direito gozar e de (por favor!) não ter o clitóris confundido com a uretra? 

Para Cristina Werner, psicóloga, terapeuta sexual e de casais e membro da Sociedade Brasileira de Sexualidade Humana (SBRASH), as respostas para essas questões dependem de um conjunto complexo de fatores, que se misturam entre a experiência pessoal e a vida em sociedade: “A forma como cada mulher lida com a sexualidade depende de como as mulheres de sua família abordavam o assunto, as amigas, as pessoas com quem conviveu e isso vai mudando a cada encontro, seja com homens ou com outras mulheres”, explica. “Acredito que existe cada vez mais abertura para falar sobre o tema, seja na privacidade do casal ou nos coletivos em que elas têm espaço livre para discutir. Porém, estamos em um momento de retrocesso, no Brasil e no mundo, nas discussões sobre gênero e sexualidade.”

A insegurança jurídica e a perda de direitos, que afetam mulheres e pessoas LGBTQIA+ em vários países, segundo Cristina, resultam em um clima de insegurança também nas práticas sexuais, além de reforçar o tabu em torno da questão. “No Brasil, acham que ensinar sobre sexualidade para crianças nas escolas é ensinar o ato sexual, a transar. Não é esse o objetivo. A educação para a sexualidade na infância é para preservar o corpo infantil, tem um caráter preventivo contra possíveis ofensas sexuais que a criança possa ficar exposta”, explica. 

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(Carol Ito/Ilustração)

“No Brasil, acham que ensinar sobre sexualidade para crianças nas escolas é ensinar a transar. Não é esse o objetivo. Essa educação na infância é para preservar o corpo infantil, tem caráter preventivo contra possíveis ofensas sexuais”

Cristina Werner

Se a educação para a sexualidade não acontece na escola ou dentro de casa, é comum que se busque referências na pornografia disponível on-line, o que Cristina considera trazer uma série de desvantagens para a construção do imaginário erótico, tanto de mulheres quanto de homens. “Em um estudo da Universidade de Chicago, o neurocientista William Struthers [autor do livro Wired for Intimacy: How Pornography Hijacks the Male Brain] observou que, quando se assiste muita pornografia, há diminuição do núcleo accumbens, estrutura cerebral que forma nosso sistema de prazer e recompensa, responsável pela empatia. Quanto mais você assiste pornografia, segundo este pesquisador americano, menor se torna sua capacidade empática.

Ainda segundo a pesquisa de Struthers, a pornografia é uma simulação que pouco ou nada tem a ver com a realidade, o que pode resultar na construção de uma relação egoísta com o prazer. “Se aprende a transar com um espectro de gente, um simulacro, não com pessoas reais, que têm nome, endereço, sentimentos e sonhos. Isso diminui a capacidade de ir ao encontro do outro, fica mais difícil se afetar pela presença real da outra pessoa, da parceria”, pontua Cristina.

“[Com a pornografia] se aprende a transar com um simulacro, não com pessoas reais, que têm nome, endereço, sentimentos e sonhos. Isso diminui a capacidade de ir ao encontro do outro, de se afetar pela presença real da outra pessoa”

Cristina Werner
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Menos roteiro, mais intimidade

Sem aprofundar nos inúmeros problemas envolvendo a indústria pornográfica, que carece de um mínimo de regulamentação, existe a manutenção de uma narrativa falocêntrica, ou seja, que prioriza o prazer e o olhar masculino. E os roteiros pouco criativos, no geral, podem ser reproduzidos na hora do sexo off-line: “Eu demoro muito pra sentir prazer, aí o cara faz o oral em três minutos, do tipo ‘fiz minha parte’, mas eu ainda não senti nada! Os homens também têm muito a questão do fálico, se não houve penetração, não é sexo”, desabafa Mariane Leonel, 28 anos, que se identifica como heterossexual.  

“Eu comecei a ficar insatisfeita, porque parecia ser sempre a mesma dança: papai e mamãe, de quatro, de ladinho, gozamos, cada um vira para o seu lado e dorme. Essa mecânica não tinha mais graça”, conta a cenógrafa Felina Black Domme, 32, sobre o período em que esteve casada em uma relação heterossexual e monogâmica. Atualmente, ela se define como bissexual, não-monogâmica e prefere usar o codinome ao narrar suas experiências sexuais como praticante de BDSM (sigla para Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo). 

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(Carol Ito/Ilustração)

“Depois que um casal encontra seu encaixe, é muito difícil mudar, sair do roteiro erótico estabelecido. Mas, se você quiser ir de uma ponta à outra da cidade, não precisa fazer sempre o mesmo caminho. Com o sexo é a mesma coisa: você pode escolher outras rotas disponíveis no seu ‘GPS sexual’ para chegar ao orgasmo de múltiplas formas”, comenta Cristina, acrescentando que gozar não precisa ser o único objetivo. “Às vezes, numa relação sexual, não se atinge o orgasmo, mas se atinge algo tão importante quanto, que é a intimidade, que passa pela palavra, pela construção do afeto. Eu sinto que hoje as pessoas estão pouco íntimas.”

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“Ainda estamos reivindicando o gozo, falando sobre conhecer o clitóris. Tem muito ainda para aceitar, abraçar”

Felina Black Domme

Ainda estamos reivindicando o gozo, falando sobre conhecer o clitóris. Tem muito ainda para aceitar, abraçar”, diz Felina. Depois que o gozo feminino for colocado em seu devido lugar nas relações, vem o próximo passo, segundo Cristina: “Acho que a mulher pode até reivindicar não querer ter orgasmo em uma relação ou simplesmente dizer que não teve, sem fingir para poder agradar. Isso é libertador”. 

A seguir, mulheres narram suas descobertas sexuais e contam como se tornaram protagonistas do próprio prazer na cama.

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Felina Black Domme, 32 anos, cenógrafa, cisgênero e bissexual

“Eu tinha muita vergonha de trazer minha sexualdade real pra dentro das relações, pensava em como aquilo seria recebido e julgado pelo homem hétero padrão. Depois que me separei, há dois anos, comecei a explorar mais minha sexualidade, fui me desapegando dos papeis de gênero, de como deveria me comportar para ser uma mulher ‘ideal’, e comecei a questionar mais a forma como eu me vinculava afetivamente e sexualmente com as pessoas. Tudo aconteceu ao mesmo tempo, uma coisa foi alimentando a outra.

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(Felina Black Domme/Arquivo)

Quando comecei a querer coisas novas, conhecer outras pessoas, foi uma grande surpresa pra mim. Eu era daquelas pessoas que diziam ‘eu não tenho fantasia’, ‘não tenho fetiches’. Achava que gozar já tava ótimo. A forma que eu encontrei para expressar melhor minha sexualidade foi o BDSM, porque consigo lidar com emoções como raiva, controle e entrega, sempre em situações consentidas. Acabou se tornando terapêutico.

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Comecei a fazer muitas descobertas no sexo para além da penetração e descobrir outras zonas erógenas. Tenho explorado mais as questões sensoriais, da privação de sentido, ser amarrada, vendada, estimular a pele, brincar com o quente e o frio.” 

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Jéssica Balbino, 35 anos, jornalista e escritora, cisgênero e bissexual

“Percebi que o sexo poderia ser diferente quando comecei a me relacionar com mulheres. Antes disso, era aquele sexo padrão: penetração de três segundos até o cara gozar. Durante muito tempo, busquei um relacionamento, saía com os caras achando que poderia rolar uma coisa a mais. Meu objetivo não era gozar, era manter um relacionamento, ao preço que fosse. Isso é horrível, é como uma autodestruição. 

Com mulheres, descobri que não precisava ter pressa, que não é só gozar e virar para o lado, dá para explorar outras sensações de pele, de beijo, de ritmo. Isso me levou a tentar desenvolver algo do tipo com homens, mas é muito mais difícil encontrar quem esteja disposto.

Tem a questão do corpo também. Ter um corpo gordo, dissidente, te coloca num lugar cruel, que aparenta que, se a pessoa quer estar com você, você já tá ‘no lucro’. Quando saía com homens que conhecia por aplicativos, era comum rolar um sexo punitivista, violento, como se o homem sentisse uma espécie de culpa por desejar um corpo gordo e, por isso, a necessidade de punir esse corpo. Existe uma fetichização no sentido tóxico.”

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Gabriela Loran, 27 anos, atriz, transgênero e heterossexual

“Fiz minhas maiores descobertas estando em um relacionamento incrível, estou casada há dois anos. Achei que nunca fosse encontrar o amor por conta de todo o preconceito ligado às pessoas trans. Em um relacionamento, entendi que posso ser quem eu sou, amar meu corpo do jeito que ele é, porque é isso que meu marido me fala todos os dias.

Antes, tinha medo de explorar mais minha sexualidade por saber que meu corpo, enquanto mulher trans, é um corpo muito objetificado, hipersexualizado. Eu não chegava a ficar frustrada em relações casuais, mas era no automático, achava que era só penetração e acabou. Hoje, entendo que tem beijo, toque, existem muitas possibilidades antes e depois da penetração. Gosto muito de receber e fazer massagem usando óleos corporais.”

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Mariane Leonel, 28 anos, trabalha no terceiro setor, cisgênero e heterossexual

“Descobri muitas coisas sobre sexualidade conversando com minhas amigas, principalmente as mais velhas, na faixa dos 40 anos. Consegui sair do roteiro que costumava ser pré-determinado pelo homem, sair de uma posição passiva. 

Conversamos muito sobre masturbação, fui descobrindo o que eu gostava de ver, ler e ouvir para me excitar. Não gosto de pornografia, mas vejo que ela influencia muito os homens, em geral. Me incomoda essa coisa do orgasmo teatral. Depois que o sexo termina, o cara pergunta: ‘você gozou?’. Se não gozou, ele fica mal com isso. Muitas vezes, a pergunta é mais para ele sentir que cumpriu o papel dele do que para saber se você teve prazer. Comecei a falar: ‘somos dois aqui e o meu prazer é tão importante quanto o seu, vamos negociar’.

O feminismo também foi muito importante para eu entender melhor minha sexualidade, no sentido de saber respeitar meus limites. Algumas informações você só consegue conversando com outras mulheres ou buscando em sites feministas, como entender que o homem tirar a camisinha durante o ato sexual é abuso, por exemplo. Infelizmente, ainda acontece.”

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Hemily Vale, 25 anos, mestranda em geografia, cisgênero e bissexual

“A primeira vez que tive relação sexual foi com uma mulher, minha ex-namorada. Depois, quando passei a ter relações com homens, a diferença foi gritante. Sentia que eles estavam muito mais preocupados com o próprio prazer do que com o meu, era o contrário do que eu tinha vivido. Eu achava que tinha dificuldade em manter a libido, mas, me relacionando com outras pessoas, vi que não era isso. Era toque, o jeito de fazer o oral. 

Ainda que eu tenha mais noção do que eu gosto hoje, é complicado discutir sobre isso quando o sexo é casual. Rola uma timidez, fico desconfortável e, se não curto, apenas deixo para lá e não encontro a pessoa de novo. Quando me relaciono com alguém por mais tempo, consigo dialogar mais sobre o que me dá prazer. Eu tenho fetiche de transar em lugares diferentes e gostaria de testar brinquedos sexuais, mas ainda não fui atrás por acomodação, mesmo.”

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As imagens que você viu nessa reportagem foram feitas por Carol Ito. Confira mais de seu trabalho aqui

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