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Ser cura na secura

Como a força dos elementos da natureza e dos orixás podem nos levar a maneiras melhores de nos relacionarmos

por Roger Cipó 12 out 2020 00h52
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(Clube Lambada/Ilustração)

ejo pessoas que, de tão secas, sequer podem chorar. Já não podem se emocionar e transbordar, porque secou. É exatamente isso que o desamor faz: seca

Lembra que na secura não há movimento de vida? Não há criatividade, nem disposição. Não há suor, gozo e nem choro que inunda. Não há nada além de terra árida e gosto amargo na pouca saliva de quem desamou.Sinto que o desamor mata. Todo mundo já morreu um pouco, e eu escrevo porque tenho lutado para que as securas não me matem também. Mais uma vez. 

E não só isso, já que vejo cada vez mais pessoas descrentes e desmobilizadas para amar.Eu as entendo, porque estamos submetidos à uma forma que serve para poucos, e viciada em domínios, muitas das vezes, adianta a secura. Quantas pessoas você conhece desencantadas da ideia de amar? Quantas dessas pessoas se escondem atrás de um falso amor próprio para camuflar as frustrações do amor não compartilhado? Não é por acaso que vivemos um momento de produção de ódio social explícito. A descrença do amor em si e no outro só pode dar espaço para isso… A secura. 

Quantas pessoas você conhece desencantadas da ideia de amar? Quantas dessas pessoas se escondem atrás de um falso amor próprio para camuflar as frustrações do amor não compartilhado?

Antes de continuar, deixe-me contar uma coisa sobre mim, que também é motivo da minha escrita e crença na possibilidade de amor como elemento de transformação social e das relações inter-pessoais: 

Na tradição do candomblé, eu sou Ogan-Alabé (aquele responsável por conduzir os atabaques para a cerimônias e rituais sagrados). No meu renascimento, nesse universo, eu recebi o nome de Alayomi, uma contração das palavras iorubás: Ala (A cobertura/proteção de Obatalá que se estende sobre outras pessoas) – Ayó (alegria) – Omí (água). Meu nome, em tradução livre quer dizer algo como “Aquele que é protegido por Obatalá e traz a alegria das águas”, uma referência direta às divindades donas da minha energia vital: Obatalá e Oxum.  

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Obatalá é considerado o pai da humanidade, e em nossa tradição, dividiu com Odudua a missão de criar os seres humanos, orientados por Olodumare. Oxum é a dona de todas as placentas, protetora dos ventres, da fertilidade feminina, das águas que constituem todos os corpos, do bronze e das riquezas produzidas pelo ouro e mel. Por conta de sua doçura, vaidade e encantos, ficou popularmente conhecida como a divindade do amor, e ela é. Só que não desse amor ocidentalizado que todes acostumaram a pensar, apenas à forma de relações entre casais, ou o despertar do interesse por alguém. O amor de Oxum é antes e se apresenta como a força mais sensível e poderosa do amor próprio. Só conhece a força de Oxum quem compreende a importância do amor próprio e isso inclui entender seus limites, suas forças, fraquezas, sentimentos e poder de transformar a si mesmo naquilo que se sonha. 

Só conhece a força de Oxum quem compreende a importância do amor próprio e isso inclui entender seus limites, suas forças, fraquezas, sentimentos 

Oxum ensina que é impossível amar bem alguém sem amar a si mesmo antes. Logo, alguém que conhece esse amor, dificilmente vai cair na armadilha do amor desumanizador, desse que seca as possibilidades de vida, pois não negociará qualquer gota que se vende como chuva de afeto, pois saber de amor próprio é produzir a sua chuva a ponto de inundar-se e transbordar para a direção que quiser. 

Entendeu porque eu precisava falar de Oxum, enquanto critico a secura que nossas relações sociais, afetivas e até sexuais se transformaram? Falta Oxum em nossos afetos, por isso pouca coisa germina. Por isso somos pessoas adoecidas.

Com isso, eu também quero dizer que a qualidade das nossas relações amorosas impacta diretamente na relação da nossa comunidade, em pequena e grande escala. Acredite. Eu quero chamar atenção, como tenho feito comigo, para dizer que também somos responsáveis pelo desamor que nos afoga em securas. A escassez de afeto, projetada para fincar raízes na solidão precisa ser podada por nós mesmos. Ainda que não tenhamos culpas da secura provocada por uma cultura estabelecida como hegemônica para definir algo gigante como amor, temos uma responsabilidade que todes podemos assumir. Uma de nossas grandes responsas nisso é se demorar nesse lugar do não-amor. 

Será que a desculpa é culpar alguém pelo não-encontro, pelas expectativas e conflitos não resolvidos? E se esse ciclo sem ser cuidado, só encaminhar para o nada? Tudo bem se afogar em pouca água?

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O que você tem feito para ressignificar amores que caminham para a secura? Já pensou que, talvez, a gente se deixa secar, quando não seca as lágrimas que brotam para lavar o que tem que limpar?

Um caminho ancestral para gente pensar é a referência de amor do livro O Espírito da Intimidade, em que Sobonfu Somé conta que, para os Dagaras de Burkina Faso, a água é um elemento essencial para resolver conflitos do amor por causa das suas qualidades reconciliadoras, unificadoras e pacificadoras. A água é que traz a tranquilidade necessária. Já a terra significa o alimento, o pé no chão, um sentido de identidade.

E eu digo: água em terra é possibilidade de vida. É germinar. É brotar. É o nascer mais uma vez. Por que eu tô falando isso? Talvez, seja uma dica para que a gente olhe por caminhos práticos de curar a secura. E se(r) amar, como Oxum é. Já pensou?  

Podemos?

Mergulha. Primeiro, em si, até transbordar e, só depois disso, ser. E repito: se(r) ama(r).

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