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Histórias do Reggae: Melô de Antônio José

Na quarta reportagem sobre o gênero musical no Maranhão, um funeral para astro das pickups se torna hit

por Bruno Azevêdo Atualizado em 3 nov 2020, 17h33 - Publicado em 30 out 2020 00h32
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(Clube Lambada/Ilustração)

bairro do São Francisco estava intransitável. De carro não se ia nem vinha: Ilhinha, Lagoa, Renascença e Centro eram áreas impossíveis de alcançar no meio daquela quarta-feira útil de setembro. Ainda assim, gente chegava às carradas no Espaço Aberto, vindas de todos os cantos da cidade. Os ônibus deixavam as pessoas longe e elas caminhavam lentamente, dando às ruas sempre agitadas do lugar um ritmo lendo de procissão. O que não era, mas era como se. Motos e muitas bicicletas paravam nas calçadas e os moradores que não haviam saído se debruçavam nas janelas pra ver passar o cortejo que subia do clube acompanhando a viatura do corpo de bombeiros. Ônibus fretados para a ocasião seguiam o enorme carro vermelho enfeitado com coroas de flores, enquanto as pessoas pegavam os transportes que conseguiam pra não perder o momento. A massa abria passagem enquanto vários veículos de comunicação cobriam o evento, cuja dimensão faria pensar que se tratava de algum político, artista famoso ou uma grande autoridade.

Era 1996, fazia calor e quem estava no caixão que a viatura levava era um DJ de reggae: Antônio José, o Lobo.

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» LEIA MAIS: Na primeira reportagem dessa série, a história do Melô de Valéria, uma homenagem a uma das dançarinas de reggae mais queridas do Maranhão
» E MAIS: Na segunda reportagem dessa série, o amor de um locutor de rádio e uma fã se torna um melô
» AINDA: Na terceira reportagem de Bruno Azevêdo, a história de uma atriz pornô que virou sucesso do reggae em São Luís

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Desculpa pra beber

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– Mãe, eu sou um artista! No dia que eu morrer, meu velório vai ser assim igual ao desses artistas que passa na televisão aí!

– Tu é um sem vergonha, isso que tu é, menino! Vai estudar!

Dona Zeca deu uma bisca no filho por mais uma asneira. Não foi a primeira, não seria a última. O moleque era mesmo uma praga.

Nascido em Ariquipá, povoado de Bequimão, baixada maranhense, em 1970, Antônio José Pinheiro da Silva era um dos mais novos filhos entre os 11 do vaqueiro Marinaldo e da professora e costureira Maria José Pinheiro, a dona Zeca. A família numerosa era comum no interior e a molecada se virava ajudando os pais e brincando. Dois morreram ainda crianças. O menino Antônio José curtia festas desde pequeno. Ainda no interior, enchia os olhos quando alguma pequena radiola ia tocar. A mãe recolhia a cria dos festejos logo após a missa, mas o pirralho dava um jeito de escapar, mesmo sabendo que depois levaria umas bordoadas. E levava. O casal decidiu dar uma vida melhor pros filhos e despacharam a cria pra capital. Tinham irmãs no São Francisco e compraram uma casa na rua 2, numa área onde a maré, antes da urbanização da Lagoa, chegava quase na calçada. Era começo dos anos 1980, o menino tinha 9 anos. Seu Marinaldo continuou em Ariquipá, de onde mandava mensalmente os mantimentos, Dona Zeca, mulher rígida, vinha com frequência, mas após alguns anos, se mudou pra São Luís pra ficar com os filhos; seu Marinaldo já tinha franqueado a família, tido mais sete filhos com outra mulher e outros tantos com outras aventuras.

Silvia era uma das irmãs mais próximas e sempre estudou na mesma sala de Nemco, apelido do futuro DJ ainda em Ariquipá, é ela quem me diz que Antônio José era um moleque rueiro, não muito fã da escola, que manteve o hábito de fugir pra festas: “Todo mundo vinha bonitinho, mas ele sempre tinha reclamação, que ele era bagunceiro, que ele se juntava com os menino pra bagunçar, que ele não fazia o dever, tudo era ele. Ele era danado demais, e as professoras mandavam recado pra minha mãe. Quando minha mãe chegava no colégio ele parecia um santo, sentado, aí minha mãe taca! Toda semana ele levava uma pisa. Ele parou de estudar na sétima série”.

Ainda na adolescência conheceu Magão, amigo de Ronald Pinheiro, seu irmão. Na época, Magão tinha uma oficina de eletrônica e convidou Ronald pra trabalhar com ele, mas não teve uma resposta muito boa, “e tinha Antônio José, um gurizinho assim da perna torta, um molequezinho, chamava Nemco, ele dizia ‘ô, Magão, Magão me ensina eletrônica”, aí eu de molecagem dei uma lista de eletrônica pra ele e disse ‘então tá aqui, se tu decorar essa lista daqui pra amanhã tu vai trabalhar comigo’. Rapá, no outro dia eu cheguei e ele tinha decorado a lista. Tudinho. Aí eu peguei ele, ele não tinha tênis, eu comprei um tênis e levei ele pra trabalhar comigo na rua Godofredo Viana. Daí a gente passou a ser irmão”. Antônio José não curtia a escola, não sabia ainda o que queria fazer, mas não sabia não fazer algo, era um moleque inteligente arreliado que só. Magão seria conhecido mais na frente como Tony Tavares, DJ, radialista, cantor, falecido em 2014.


“Chamaram um sujeito chamado Osvaldo pra colocar um som ainda muito modesto, que depois foi substituído por um equipamento maior, de Roberval; de início era ele mesmo o discotecário, que naquela época não havia muita distinção entre as funções: o sujeito carregava a caixa, montava o som, calibrava, tocava, desmontava, recebia e ia embora, numa espécie de one man-radiola”

Nos anos 1980, o São Francisco era uma festa só. Tinha bloco de carnaval e clube pra tudo quanto é lado. Na metade da década, três “blocos de cachaceiros” chamado Motivo pra beber, da Rua 2, Os Persistentes, da Rua 6 e o UPL, Unidos pela Loucura, da Rua 5, se fundiram no Grêmio Recreativo e Cultural Quilombo. Chamaram um sujeito chamado Osvaldo pra colocar um som ainda muito modesto, que depois foi substituído por um equipamento maior, de Roberval; de início era ele mesmo o discotecário, que naquela época não havia muita distinção entre as funções: o sujeito carregava a caixa, montava o som, calibrava, tocava, desmontava, recebia e ia embora, numa espécie de one man-radiola. Conversei com Zeca, um dos fundadores do Quilombo, que me disse o seguinte: “Era uma radiola à válvula e depois de um tempo ele vendeu a radiola pra gente. Magão foi o primeiro DJ do Quilombo, oficial. Nessa que ele foi ser DJ do Quilombo, o Antônio José colou com ele. Tudo que Antônio José aprendeu como DJ ele aprendeu com Tony Tavares”.

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Tavares era, com Antônio José, frequentador do clube. Conversei com Tavares em 2010 e ele me contou a história: “Quando eu entrei como DJ eu já era dançarino de reggae e tal, ganhava concurso, essas coisas, aí eu fui ser DJ de lá. Naquela época eu consertava televisão, rádio, e fui consertar o som de lá, daí fiz amizade lá, só vivia lá, direto, no clube. Era uma radiola a válvula, grande, e um dia o cara comprou um tape, e eu fui instalar o tape lá, pra tocar lá, pra tocar fita pra tocar reggae”.

O Quilombo fazia festas de samba ao vivo, mas a grande jogada era aos domingos. Quando Magão saiu, Antônio José assumiu o valvulado. No estilo dos DJs de balanço como Cesinha do Egito, precisava ter uma presença explosiva e as festas do clube ficaram ainda maiores com um discotecário que começava a desconstruir aquele papel: Antônio José falava, cantava por cima dos balanços, inventava letras. Jailder e Ferreirinha, DJ e dono do Espaço Aberto, iam ao Quilombo pra sacar a sequência de balanços de Magão e seu assistente depois que a festa do Espaço terminava, e Magão e Antônio José davam um pulo no espaço antes de começar a chacoalhar a galera no Quilombo, “nós ia curtir eles lá”, disse Jailder, “e ele já era bom nesse tempo”.

Foi aí que o magnata da Estrela começou a sacar o trabalho de Antônio José.

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Estrela

Ferreirinha chegou em São Luís também moleque, sozinho. Era dono de um time de futebol e arrendou um antigo clube chamado Cajueiro, no final da Rua 3, junto ao mangue. O lugar foi rebatizado de Espaço Aberto. O espaço começou com festas mistas, mas acabou se especializando em reggae a virando referência nos anos 1980 e 1990. Ferreira tinha tino pros negócios e foi articulando o clube, que aos poucos virava seu principal sustento. Contratou Jailder como DJ, que depois foi substituído pelo DJ Valterlino, de quem hoje ninguém sabe dar notícias.

Ferreirinha se emociona ao falar do Lobo: “Eu montei a Estrela 2 e Antônio José tava no Quilombo, eu disse ‘rapaz, aculá tem um pequeno… eu gosto do estilo dele…’ aí eu trouxe ele (…), mas ele disse ‘olha, eu vou trabalhar do meu jeito!’

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– Como é teu jeito?

– É jeito de balanço! Pulando, sacudindo!

– Bicho, isso vai dar certo?

– Rapaz, dá.

– Tudo bem, vamo ver o que que dá. – e ele entrou no Espaço, comprei um microfone sem fio pra ele e ele começou a fazer loucura.”

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A loucura de Antônio José revolucionou o que era ser DJ no Maranhão. Antes dele, o discotecário não era a estrela que hoje é. Jailder, primeiro discotecário do Espaço Aberto, entrava e saia calado, seu trabalho era o de operar o tapedeck, o que fazia de costas pro público, como um padre das antigas. O DJ abria as noites no Espaço com uma sequência pré-programada de Gregory Isaacs que tomava todo o lado de uma fita, ia pra porta, papeava, sem grandes preocupações com a galera; Antônio José também começava suas festas com Isaacs, mas aquilo era um sinal de sua presença, não mais uma sequência pré-programada. As falas dos DJs até o começo dos anos 1990 eram pequenas intervenções institucionais, a serviço da festa, da radiola ou do dono do clube, se resumiam a anúncios úteis de uma festa próxima, ou mesmo que aquela seria a última sequência da noite: “Nesse tempo não tinha nem prefixo, a música não tinha prefixo, eu rolava a música limpinha”, me disse Jailder. A função de DJ era técnica, não performática, não à toa os primeiros deles também tinham que entender de eletrônica. “Tinha uma chave pra calibrar o tapedeck, pra dar mais agudo, botava um cabeçote pro agudo sair mais bonito”, completou.

Antonio José no comando da Estrela
Antonio José no comando da Estrela (O Estado do Maranhão/Reprodução)

A entrada de Antônio José coincide também com o aparecimento das mesas de som, que não obrigavam o operador a passar boa parte do tempo ajustando botões num trambolho, o Lobo ia pra galera, cantava por cima das canções, inventando letras, criava bordões até hoje repetidos nos salões e sua “sequência demolidora” realmente abalava as estruturas de qualquer lugar; antes de Antônio José as pessoas iam ao clube ou a uma radiola, com ele de fato se abriu a era na qual o DJ era a estrela, e o regueiro passou a seguir um DJ independentemente do lugar. Tá certo que o Lobo era a cara do espaço, mas o DJ era viciado no próprio trabalho, vivia intensamente o mundo do reggae, de maneira que tocava em duas ou até três festas na mesma noite, pra ele não existia não, não tinha Carnaval triste. Após conversar com vários de seus conhecidos, me parece cada vez mais uma pessoa movida a paixões e suas paixões eram as mulheres, a cerveja e os melôs.

E ninguém batizou melôs como ele. Marcus Vinicius, DJ, radialista e grande amigo de Antônio José o definiu como um Midas: “Tudo que ele tocava virava ouro”. O moço tinha um faro pro sucesso e tinha nas mãos a máquina pra tal. Silvia, sua irmã, me falou que ele muitas vezes ganhava o regueiro pelo cansaço, “tocava tanto uma música que a gente acabava gostando”. Toda semana um novo melô era lançado no Espaço e Antônio José sabia bem como e quando colocar nomes: era dele a decisão do que iria tocar, não do radioleiro: “As músicas eram batizadas por Antônio José, chegavam no aeroporto e iam direto pro escritório da Estrela do Som. Aí lá as músicas eram escutadas, Antônio José pegava as músicas, a gente ficava nesse corredor com uma caixa de som o receiver e o toca disco. Aí se colocava a música pra tocar e Antônio Jose já ia assim de cara, ele era um cara que tinha o ouvido assim muito apurado, uma sensibilidade muito apurada pro que ia servir e o que não ia servir e ele já ia separando. ‘Bom, essa aqui tira pra cá, essa aqui é pra cá, essa aqui é pra cá’ e ele já ia fazendo. E a partir disso ele ia escutar as músicas com calma pra identificar o que ele poderia lançar como melô, o que a música dizia primeiramente”, me disse Mauricio Capella, outro grande amigo do DJ.

Fora do mundo dos melôs o Lobo era meio avoado. Seu único documento, segundo a família, era a segunda via do registro de nascimento, tirado pela mãe pra que ele casasse. O segundo foi a certidão de casamento. As fotos do santinho do seu velório eram as 3×4 da identidade que ele não foi tirar.

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O Lobo também sabia fazer política, e batizar melô era um tipo de esgrima social. Ofereceu canções pra amigos como Capella, Cesinha do Egito, pessoas próximas como Poliana (filha de Ferreirinha) e outras figuras do reggae, como Nogueira, um agente de viagens a quem dedicou o Melô de Sunset; a lógica dos melôs batizados por ele era bastante pessoal e servia ao que entendo aqui como um tipo de senso de comunidade que dava liga à massa regueira, o DJ não saia do seu altar como gesto meramente simbólico, era um cara do asfalto, comum, que mesmo no auge da fama ainda andava pela mesma Rua 2 chutando bola com os moleques, amigos e pessoas reputadas no meio eram saudadas por ele ao microfone ao entrar no clube, onde transitava falando abertamente com todos. O reggae passou a ter uma estrela e não era necessariamente a Estrela do Som.

Antônio José ao lado da Estrela do Som
Antônio José ao lado da Estrela do Som (Natty Naifson/Arquivo)

Foi nessa época que Ferreirinha encontrou o primeiro disco da banda inglesa Akabu, de 1989. A banda ficou famosa por ser o primeiro grupo feminino do reggae, formado pelo duo Valerie Skeete e Vyris Edgill, que começou como um grupo chamado African Woman, mudando de nome logo após. Ferreirinha disse: “Na primeira viagem que eu fui, eu encostei na França, e tem uma lojinha lá pequenininha, com disco de toda parte do mundo, e lá eles não abrem o disco, daí eu comprei três discos africanos, eu disse ‘rapaz, esse disco aqui eu vou levar’. O certo é que quando eu cheguei aqui e abri o disco era bom pra caramba. Desse disco saíram vários melôs, como o Melô de São Francisco e o Melô de Antônio José. A bolacha tinha 8 faixas agitadas e a segunda do lado B, ‘Time’, caiu como uma luva com o nome do DJ. ‘It Only Takes Time’, dizia o refrão, que o regueiro maranhense até hoje canta como algo do tipo ‘Antônio José style’, repetindo várias vezes o nome do ídolo, que tocava a canção em todas as festas.”


“Fora do mundo dos melôs o Lobo era meio avoado. Seu único documento, segundo a família, era a segunda via do registro de nascimento, tirado pela mãe pra que ele casasse. O segundo foi a certidão de casamento. As fotos do santinho do seu velório eram as 3×4 da identidade que ele não foi tirar.”

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O fato é que por mais que eu tente dar destaque a essa música como exemplar ou crucial à trajetória do DJ, Antônio José não cabe num melô só e “Time”, com sua letra de amor que diz que cada um e cada amor tem seu tempo, é uma entre várias pedradas que o Lobo arremessou. O texto sobre o Melô de Antônio José só tem Antônio José, não tem o melo, desculpem.

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(Akabu/Reprodução)

Investigar a história do Lobo é também olhar a história do São Francisco. Ao longo de uma semana na qual pesquisei, tropecei com uma dúzia de pessoas que foram seus amigos, gente que não era necessariamente do reggae, mas que compartilhou pequenas histórias envolvendo o DJ, uma espécie de história dos afetos do bairro, que era impossível morar por aqui (moro na Rua 1) e não ouvir o som do Espaço, Quilombo ou mesmo do Som do Povo, Antônio José jamais deixou suas origens e os donos de quitanda mais antigos abrem o sorriso ao lembrar do moleque que comprava peteca e ficou famoso. Numa noite parei quatro moças que conversavam numa calçada da Rua 3 (pois é, por aqui as pessoas ainda colocam suas cadeiras na calçada ao cair da tarde) e perguntei sobre o DJ. Rosângela, Lina, Paula e Ozymara eram pequenas demais pra ir ao Espaço Aberto, “a gente ficava só na vontade ouvindo a sequência demolidora de Antônio José. Dia de sexta feira era o reggae social, né? As pessoas arrumadinhas, cheirosinhas, morenos, não é? Bonitos e tudo, e a gente assim de ir no reggae e nossos pais não deixavam”.

A sorte das meninas era a Maratona que rolava no espaço, festa absolutamente maluca na qual o casal que conseguisse ficar dançando sem parar por mais tempo ganhava um prêmio, geralmente indo de sexta a domingo, “eles almoçavam dançando reggae”, disseram, “e nesses dias ficava aberto o dia inteiro e a gente conseguia ir lá. A gente ia de manhã, e aproveitava e dançava também”. As irmãs Silvia e Ozymara ficavam acordadas até alta madrugada, anotando a sequência de melôs numa agenda, conferindo o que seria lançado naquela noite. Era um DJ de reggae servindo como artista de formação de gerações do bairro, mesmo as que não tinham idade para vê-lo ao vivo.

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Paz

Entre as várias festas especiais do Espaço Aberto havia a Festa da Paz, na qual só se entrava de branco. A festa durava dois dias, com um lava pratos na segunda feira. Era uma das maiores festas da casa e naquela segunda, 16 de setembro, o DJ Antônio José comandava o som, como sempre, e como sempre tocava numa festa com o coração em outra. A outra era o Festejo da Norte, do Boi de Iguaíba, zona rural de São Luís. No Domingo da Paz, o radioleiro e DJ Junior Black foi ao espaço aberto e convidou o Lobo pra rolar uma sequência, ali mesmo foi anunciado no microfone que no dia seguinte, após o lava pratos, Antônio José estaria presente na no Iguaíba. Maurício Capella não foi ao lava pratos, mas ficou de ir na festa seguinte, “nos encontramos no rio São João, eu, voltando pro Espaço Aberto e eles indo pro Iguaíba”, falou Capella.

José de Ribamar Ramos Filho, o Zezinho, nasceu no São Francisco e era frequentador do Quilombo, trabalhava como motorista e foi contratado por Ferreirinha pra comandar a D-20 da Estrela do Som: “Eu recebia ordens de Ferreirinha, dona Raimunda, que era a mulher dele, e Antônio José”, me contou, na confeitaria onde hoje trabalha. Antônio José terminou de tocar e chamou Zezinho pra levá-lo à outra festa: “Rapaz, tu quer ir pra Iguaíba mesmo? Já tamo tudo cansado!”, interpelou. O DJ disse que precisava ir, entrou na casa de Ferreirinha e voltou com a chave do carro. Partiram acompanhado da esposa de Zezinho e de uma moça chamada Silvana que, como Antônio José, já tinha tomado uns pileques. Ordem do Patrão, Zezinho foi.

Segundo Capella, a festa no Iguaíba já estava acabando. Antônio José tocava do mesmo jeito pra um clube lotado ou pro faxineiro que limpava o salão vazio. “Lá não tinha mais ninguém, tinha um único casal e Gilberto, que era o cara que tomava conta da Radiola.” Junior Black, pensando que o amigo fosse lhe dar um bolo, foi pra casa. Prossegue Capella: “Aí Antônio José tocou meia hora para este casal e, quando ele foi tocar a última música, me chamou e disse: ‘olha, Capella essa é que vai comandar a sequência de reggae daqui por diante. Esse vai ser o grande sucesso de São Luís’”. Era o Melô do Caranguejo.

Saíram de lá com Capella e Ronald Pinheiro num carro, Antônio José vinha dormindo no outro com o mesmo pessoal da vinda. Pararam na Forquilha pruma mudança de passageiros e seguiram viagem. Passava das 3 da manhã. Zezinho ao volante: “Quando chegou no Cohafuma, eu fui fechado, um cara bateu bem na frente da D-20, eu perdi o rumo, ao invés deu ir pra frente eu já fui foi pro lado, porque a D-20 tava com dois pneus novos na frente, largos, e dois pneus finos atrás. A D-20 não tem peso atrás e tinha dado uma chuva. Quando ele bateu, a D-20 rodou, aí eu fui pra cima da barreira e saí capotando, eu tentei agarrá-lo, mas não consegui, só consegui triscar no ombro dele, porque eu tava preso no cinto”.

Antônio José voou pela janela da D-20 e quebrou o pescoço enquanto o carro capotava em frente à igreja do Cohafuma. Capella viu o acidente e se aproximou com Ronald, mas já era tarde demais, o reggae do Maranhão havia perdido sua maior estrela.

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O cortejo de Antônio José não seguiu o caminho mais próximo até o Jardim da Paz. O carro dos bombeiros foi pela ponte, passando por vários dos lugares onde o Lobo havia tocado. O cemitério estava lotado e dezenas de carros tocavam os grandes melôs da carreira do Lobo. O caixão desceu naquela tarde de quarta coberto com as bandeiras do maranhão e da Jamaica, centenas de flores e oferendas que os fãs jogavam.

O DJ deixou uma marca que hoje, 21 anos após o trágico acidente, ainda não passou. Todos os anos são realizadas festas em seu tributo e há consenso no fato de que ninguém surgiu com tamanho carisma no universo regueiro quanto ele.

A pequena Ozymara, naquela noite, sem poder acompanhar o cortejo que levou o corpo do seu ídolo, pegou a mesma agenda na qual toda semana registrava sua sequência demolidora, e escreveu um pequeno tributo, guardado desde então numa gaveta mofada de passado, que em toda sua gentileza me deixou reproduzir:

TRIBUTO A ANTÔNIO JOSÉ
Em sua maratona sempre foi feroz como um leão, forte como um índio, hábil como um homem da floresta. Era um arrastador, trazendo todos nós no seu arrastão, para fazer outro tipo de serviço, era um caranguejo, mas naquilo que deus o destinou era um rei, e como um bom trabalhador, deixava o regueiro em total liberdade, e a cada reggae que tocava, parecia viver um sonho de amor, e as olhadas que jogava para cada menina linda, e os sorrisos para as catirobas, nenhuma delas resistia ao seu jogo de sedução. Na praia, ele, a “estrela”, com sua Estrela, faziam a união e para todos qualquer sol era sol de verão, onde estava de longe, ouvíamos sua inconfundível voz, que entrava na mossa mente como o som de um pica-pau.

Depois de tudo isso nos restou deixar um espaço aberto para suas ótimas lembranças, principalmente a galera do São Francisco, que nas sextas prestigiava com amor o seu trabalho e hoje com saudade reza pela alma do Lobo, que sempre será o maior, ou melhor, “o melhor”

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Anthonny Joseph the Wolf
The best by Saint Louis
Ozymara Viegas, setembro de 2016

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A imagem que abre a matéria mostra Antonio José em frente a uma radiola e faz parte do arquivo de Natty Naifson.

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