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Muito além da tela preta

Conheça o Projeto Afro, iniciativa que mapeia artistas negres em todo o Brasil e luta por representatividade e a igualdade racial na arte

por Alexandre Makhlouf Atualizado em 24 jul 2020, 15h35 - Publicado em 24 jul 2020 10h17
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(Clube Lambada/Ilustração)

uantas pessoas negras estão no seu convívio diário? E quantos artistas negres você conhece, quantas obras assinadas por esses profissionais você já viu em museus? Perguntas como essa, infelizmente, podem ser difíceis de responder – especialmente se, assim como eu, você for uma pessoa branca e privilegiada, que vive na nossa sociedade racista.

Foi pensando em aumentar a visibilidade e a representatividade desses artistas que Deri Andrade, jornalista e pesquisador, criou o Projeto Afro, site que estreou em junho deste ano e faz um mapeamento de artistas negres em todo o Brasil. “Gosto de falar que o mapeamento em si foi pensado nessa organização de informações e ideias, que possibilitam que as pessoas conheçam o artista, o perfil dele e também uma publicação, acadêmica ou editorial, sobre o tema para se aprofundar nesse universo”, ele conta.

Em uma conversa com Elástica sobre sua nova empreitada, Deri fala sobre a necessidade de darmos mais visibilidade aos artistas negres contemporâneos e também de reconhecer nomes mais antigos que não tiveram a devida representação na história por conta da cor de suas peles. “É importante pensar que essa discussão vai além de esses artistas estarem nas instituições culturais, mas é importante também que tenhamos educadores negros, pesquisadores negros, curadores negros, pessoas negras que trabalhem na área cultural – que todos sejam inseridos de fato dentro desse espaço artístico de galerias, museus e exposições”

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(Leandro Muniz (SP)/Reprodução)

Como surgiu a ideia do Projeto Afro?
O projeto surge muito atrelado ao início do curso de especialização que fiz na USP, voltada para discutir questões étnico-raciais, educação e cultura. A partir desse re-contato com a academia, consegui explorar minha pesquisa nesse âmbito acadêmico, atrelado à agenda de disciplinas do curso, arte afro-brasiliera e africana, e também a disciplinas voltadas para as questões jurídicas, com foco nas discussões étnico-raciais. Mesmo entrando na especialização em 2017, já tinha essa vontade de criar algo desse tipo, mas foi o curso que me deu a oportunidade de organizar as ideias, ampliar a pesquisa, ter contato com colegas que também estudam a questão. A vontade ficou mais forte porque eu sentia também uma necessidade e uma ausência de um espaço online que discutisse essa questão, que apresentasse esses artistas negros e negras, um espaço que fosse só focado nisso. A gente tem, claro, muitas iniciativas que surgiram antes do Projeto Afro – e é importante lembrar de quem veio antes –, mas mesmo com eles existindo, eu queria criar essa plataforma que englobasse só esses artistas.

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(Leandro Muniz (SP)/Reprodução)

A plataforma é colaborativa ou você, como fundador, convida artistas para participarem?
Nessa primeira fase, comecei a organizar essas informações a partir do que eu estava estudando. Alguns desses nomes que estão na plataforma vieram ao meu conhecimento em referências bibliográficas: livros sobre o tema, catálogos de exposições, materiais didáticos educativos, algumas teses e doutorados. Nos últimos cinco anos, a gente teve uma série de ações que aconteceram na área cultural que trouxeram de novo a discussão da questão racial na arte brasileira. Isso já vem acontecendo há alguns anos e tivemos exposições-marco, como A Mão Afro-brasileira, que aconteceu em 1988 no Museu de Arte Moderna de São Paulo e foi curada por Emanoel Araújo. Foi, inclusive, uma exposição que, de alguma maneira, começou a criar o Museu AfroBrasil, que tem o Emanoel como diretor e surgiu no começo dos anos 2000. Agora, alguns outros museus se voltaram para o tema, como o MASP, o Tomie Ohtake e a Pinacoteca – esta destacou os artistas afrodescendentes em seu acervo em uma exposição em 2015. Tudo isso me serviu de fonte. Em 2019, um ano antes do lançamento, já tínhamos redes sociais do projeto com material publicado sobre os artistas e, aí, eu fiz uma chamada aberta para pedir portfólios de outros profissionais. Fiz isso porque senti falta de artistas jovens, recém-formados, que não necessariamente estão nas grandes instituições. Queria saber o que os artistas do Amapá, do Acre, de outros territórios estavam fazendo, para sair um pouco dessa região sudestina. O mapeamento foi criado para saber o que está sendo produzido nessas outras regiões. O chamamento ajudou muito nessa questão. Até o lançamento do site, recebi 157 portfólios de artistas de todo o Brasil, e foi muito interessante conhecer esses trabalhos e rever alguns. Ampliar o mapeamento para além do que eu vinha pesquisando nos livros foi fundamental para lançar o site do jeito que ele é hoje.

Esses artistas mais jovens, que trabalham com inúmeras técnicas, também trazem essa pluralidade da arte negra. Trabalhos que são feitos por artistas negros que não falam necessariamente sobre questões raciais. O site pretende mostrar também essa questão, discutir sobre isso: é muito inerente ao nosso olhar, quando vê o trabalho de um artista negro, acreditar que vai trazer questões de cunho racial, mas isso não é necessariamente verdade.

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“Artistas negres existem no Brasil. E eles realizam e apresentam suas obras há séculos. Não temos apenas artistas contemporâneos, há muitos outros que trabalharam próximos ao modernismo, que ainda não são de fácil acesso e compreensão do público geral, diferente de uma artista do porte da Tarsila do Amaral”

Deri Andrade.
Deri Andrade. (Deri Andrade/Divulgação)

Esse é o primeiro projeto para mapear artistas negres pelo Brasil?
Antes de o Projeto Afro ser lançado, outras iniciativas que pretendem também fazer um mapeamento já existiam para discutir essas questões. Algumas delas foram referências para mim, inclusive. O Menelick 2° Ato, revista independente de São Paulo que também trata da questão racial de forma mais abrangente, falam da cultura negra, afrobrasileira, não só no recorte das artes visuais. O AfroTranscendence, que aconteceu em 2015, que também fez uma curadoria com alguns artistas em vídeos, entrevistas e outras publicações só com artistas negros e negras. Tem também a MUNA, que foi um projeto realizado por artistas negras brasileiras que fazem uma pesquisa sobre a questão da mulher negra nas galerias de arte, nos espaços institucionais, mostra onde elas estão atuando. E também tem o projeto Dúdus, que aconteceu em paralelo com o Projeto Afro e faz também essa curadoria de artistas negros pensando na questão do afrofuturismo, na questão de gênero – eles, infelizmente, não estão mais ativos nas redes sociais, mas é importante citá-los. Não sei se o Projeto Afro é o primeiro do Brasil nesse sentido, mas essa organização de informações, ideias, conteúdos e dados eu acredito que seja a primeira vez que vemos por aqui. 

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(Castiel Vitorino Brasileiro (ES)/Reprodução)

Como são divididos os trabalhos destes artistas no site?
Além dos perfis de artistas, também há artigos, publicações acadêmicas, entrevistas – que eu mesmo conduzo – e textos de opinião de colaboradores. E também temos a agenda, em que fazemos uma curadoria de eventos que acontecem online, principalmente agora, no contexto da pandemia, mas falando de cursos, webinários, exposições online, feiras que o Projeto Afro acredita que sejam ações bacanas. Gosto de falar que o mapeamento em si foi pensado nessa organização de informações e ideias, que possibilitam que as pessoas conheçam o artista, o perfil dele e também uma publicação, acadêmica ou editorial, sobre o tema para se aprofundar nesse universo.

E quem cuida do Projeto Afro além de você?
Até aqui, tudo foi feito por mim. Fiz toda a organização e a pesquisa sozinho, muito também pela minha própria especialização. Mas, a partir do momento em que  o site é lançado, ele nasce com essa ideia de ser colaborativo. A primeira colaboração que tivemos foi da Carolina Lauriano, curadora independente negra, que escreveu sobre os espaços independentes que estão sofrendo com a questão da pandemia. Você não imagina a quantidade de gente que me procura para colaborar, é muito bom ver o projeto repercutindo. Os próprios artistas que foram mapeados já se mostraram também interessados em colaborar ativamente com o site.

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(Rodrigo Gonçalves (Gilbef) AL/Reprodução)

Qual o papel da arte na luta antirracista?
Apesar de termos um movimento em crescente de instituições, espaços culturais e a própria academia pensando sobre esse tema, a gente ainda não chegou num local ideal para o artista negro e a artista negra, que é a equidade entre artistas racializados – negres, indígenas, orientais – com artistas brancos. Também pensando nisso, acho que o Projeto Afro nasce justamente com a ideia de descolonizar esse olhar que foi imposto na arte brasileira como um todo, uma arte que nasce muito a partir dos cânones europeus, com olhar eurocêntrico, mas que, agora, com todos esses trabalhos, se mostra muito maior do que isso. Antes, nós tínhamos uma forma de mencionar a arte negra brasileira como primitiva, regional, periférica, entre outros adjetivos, que caracterizam essa arte como algo à margem. Mas essa produção é muito forte, plural, importante, porque ela nasce e acontece dentro de uma área de disputa de narrativas, disputas por espaço, até. Quando a gente tem uma organização de artistas como esses dentro de uma plataforma, é um jeito de mostrar que essas pessoas podem estar ao lado de artistas brancos, em qualquer exposição, falando ou não dessa questão. 

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“É importante pensar que essa discussão vai além de esses artistas estarem nas instituições culturais, mas é importante também que tenhamos educadores negros, pesquisadores negros, curadores negros, pessoas negras que trabalhem na área cultural – que todos sejam inseridos de fato dentro desse mercado artístico de galeria e exposições”

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(Castiel Vitorino Brasileiro (ES)/Reprodução)

Por que precisamos de editais e fomento à atividade artística para pessoas negras no Brasil?
É fundamental compreender isso para que a gente tenha um tratamento adequado para essa arte afrobrasileira e uma compreensão do que ela traz. Eles querem estar em galerias, ser selecionados para editais, muitos têm trabalhos plasticamente muito mais bem resolvidos do que artistas brancos. Por que eles não estão nos mesmos espaços? Políticas afirmativas de inclusão, assim como as cotas raciais em universidades, são proposições muito válidas de anos de luta em uma tentativa de reparação. Nós fomos subjugados durante séculos, e isso vai muito ao encontro da discussão sobre o racismo estrutural. É importante pensar que essa discussão vai além de esses artistas estarem nas instituições culturais, mas é importante também que tenhamos educadores negros, pesquisadores negros, curadores negros, pessoas negras que trabalhem na área cultural – que todos sejam inseridos de fato dentro desse mercado artístico de galeria e exposições. Essa presença desses agentes é importante não apenas na exposição das obras, mas que esses profissionais negros sejam inseridos também dentro do quadro de funcionários desses museus, incluindo os cargos de direção e curadoria.

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(Arthur Timótheo da Costa/Reprodução)

E qual é o papel do público – branco e negro – no aumento do reconhecimento desses artistas?
Gosto de citar uma questão para termos em mente ao responder isso: a partir do momento que as pessoas tenham interesse em conhecer esses trabalhos, a mudança já vai de fato começar. Entender, conhecer, essa vontade de procurar informações e conteúdos sobre esses trabalhos, sobre esses artistas, saber que eles existem e estão atualmente produzindo e pesquisando em diversas partes do país… A partir do momento que esse interesse surge, a gente já tem uma mudança efetiva. Artistas negres existem no Brasil. E eles realizam e apresentam suas obras há séculos. Não temos apenas artistas contemporâneos, temos da virada do século 19 para o 20, que são pouco conhecidos. Há muitos outros que trabalharam próximos ao modernismo, que ainda não são de fácil acesso e compreensão do público geral, diferente de uma artista do porte da Tarsila do Amaral. Existiram outros artistas na mesma época que nunca foram tão estudados quanto ela. 

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(Juliana dos Santos (SP)/Reprodução)

Como o Projeto se sustenta hoje? Quais foram os principais desafios para tirá-lo do papel?
Todo o Projeto Afro aconteceu até agora de forma independente e com recursos próprios. O site vem sendo desenvolvido há um ano, porque essa foi a forma que eu encontrei de viabilizar o projeto. Isso foi bom, porque construi-lo foi um processo de muito amadurecimento. Ampliar o olhar e chegar a esse resultado. Nós estamos, sim, em busca de outros recursos para que ele consiga caminhar e ampliar as pesquisas, o mapeamento, as redes de colaboração, e tudo isso demanda investimento financeiro. Tenho cuidado do projeto sozinho ao longo desses três anos quando não estou no meu trabalho fixo, que é no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), onde estou há quase quatro anos e tem sido uma experiência muito rica para o Projeto Afro também. Infelizmente, ainda não consigo dedicar 100% da minha semana para ele. Não temos nenhum financiamento público ou privado por enquanto, mas gostaria que isso acontecesse num futuro próximo para atualizar mais o site, trazer outras ferramentas e continuar a pesquisa.

Esse aporte financeiro também vai ajudar a colocar outras ações que já tenho em mente, como a realização de eventos, cursos, seminários e outros projetos que extrapolem o campo digital. Pensando nessa plataforma como não só digital, mas algo de fomento e difusão dessas discussões, no ano passado consegui realizar, no próprio Mam, um evento que teve a participação do Hélio Menezes, do Márcio Farias e a participação da Juliana dos Santos em uma mesa de debate. Todos eles são pesquisadores de questões raciais e o evento foi encabeçado pelo Projeto Afro, em parceria com o MAM. Um pouco antes da pandemia, a gente também realizou um ciclo de encontros no Sesc Santana, durante três dias, que se chamou Resistência negra em movimento: um diálogo sobre arte e sociedade. Foi um ciclo de encontros em que eu e dois amigos que são cientistas sociais, Leonardo Fabri e Wallesandra Souza Rodrigues, unimos os temas da arte e da sociedade para debater ambos os temas. E o Projeto Afro também apoiou o evento. O investimento é fundamental para levar a discussão a outros pontos. 

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Rubiane Maia, Caratinga (MG), 1979 Do híbrido entre a performance, o vídeo, a instalação e o texto, o trabalho da artista Rubiane Maia acontece. Sua prática engloba múltiplas relações entre o visível e o invisível, com pesquisa atual focada no conceito de memória e seus desdobramentos e tensões com a linguagem; e também nos fenômenos de incorporação e transe. Formada em Artes Visuais e mestre em Psicologia Institucional pela Universidade Federal do Espírito Santo. Vive entre Folkestone, Reino Unido, e Vitória, ES, Brasil. No site do Projeto Afro, conheça mais sobre o trabalho da artista Rubiane Maia: https://projetoafro.com/artista/rubiane-maia/ _ Às vezes nós precisamos voltar pra casa 2020 Performance (6 horas) Foto: Greg Goodale/Reprodução site artista

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