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“Deus é canabista”

Padre da zona leste de SP defende o uso medicinal da maconha – que ele mesmo cultiva na paróquia – e distribui sementes entre os fiéis

por Carlos Messias Atualizado em 28 jul 2020, 10h52 - Publicado em 28 jul 2020 02h15
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(Clube Lambada/Ilustração)

o rastafári, movimento judaico-cristão surgido na Jamaica na década de 1930, que tem em Jah sua representação de Deus, a maconha é celebrada de maneira ritualística, com o intuito de potencializar a experiência mística. Na igreja católica, a cannabis tradicionalmente foi tratada com moralismo e repressão, salvas algumas exceções. Entre elas, a paróquia Francisco de Assis Ermelino Matarazzo, em São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo.

Seu pároco, Antônio Luiz Marchioni, 68 anos, mais conhecido como Padre Ticão, é considerado uma espécie de herói da comunidade, reputação construída ao longo de 42 anos de projetos sociais como a criação de unidades hospitalares e a luta por moradia popular. Nos anos 1980, ao lado de fiéis, invadiu a Secretaria de Estado da Habitação, de modo a pressionar o então governador Franco Montoro a construir conjuntos habitacionais. Esteve à frente da construção do Hospital de Ermelino Matarazzo, do parque Dom Paulo Evaristo Arns, do Centro de Convivência para a Melhor Idade e do Centro de Recuperação de Crianças Deficientes. Também ajudou a levar para a zona leste unidades da USP e da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

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Antônio Luiz Marchioni, o Padre Ticão, em sua paróquia, em São Paulo (Camila Svenson/Fotografia)

Entre suas obras voltadas para o bem estar da população, há dois anos passou a oferecer na paróquia cursos semanais de naturopatia. Com auxílio e engajamento das universidades, as aulas visam instruir a comunidade a se alimentar e também se medicar de maneira saudável. Entre suas recomendações está o consumo diário da canabidiol (CBD), um dos 400 compostos e um dos principais princípios ativos da cannabis, no tratamento de diversas doenças, além de atuar também como preventivo. 


“Sempre digo: arranca a tampa do seu microondas e planta maconha lá dentro”

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Jesus, Nossa Senhora e São Francisco de Assis eram canabistas? (Camila Svenson/Fotografia)

Os estudos de naturopatia na paróquia Ermelino Matarazzo passam por ozonoterapia, pelo método ionizador japonês que altera os níveis do pH da água, produzindo a chamada água Kangen, e pela dieta ayurvédica, entre diversas medicinas holísticas. Os cursos incluem uma cartilha com os dez passos da medicina preventiva, como não consumir refrigerante e açúcar refinado, ou margarina e derivados de farinha de trigo, não utilizar microondas etc. “É um convite para a população repensar seus hábitos”, explica padre Ticão. “Sempre digo: arranca a tampa do seu microondas e planta maconha lá dentro.”

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(Camila Svenson/Fotografia)

O início

Assim, explorando técnicas alternativas, Ticão chegou ao canabidiol. “A partir da água, começamos a explorar plantas”, conta. Há cerca de dez anos, ouviu falar pela primeira vez a respeito dos efeitos milagrosos do CBD, quando entrou em contato com as pesquisas do dr. Elisaldo Carlini, da Unifesp, pioneiro no Brasil no estudo científico da cannabis. “Isso ficou na minha cabeça”, lembra Ticão. 

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Ele diz ter tomado conhecimento de mais de 600 trabalhos científicos sobre os efeitos terapêuticos da cannabis e descreve seu primeiro contato com a substância como “uma experiência pessoal revolucionária”, relata. “Todo ano vinha morrendo alguém da minha família. Eu me sentia esgotado, não conseguia nem subir um lance de escadas, achei que seria o próximo. E uma coisa que me chamou a atenção em pesquisas que eu li foi como a cannabis é recomendada em caráter preventivo”, recorda. “Tenho o hábito de acordar muito cedo. Chegava na parte da tarde, eu não tinha mais disposição. Mas, desde que descobri esse santo remedinho, acordo às 5h e vou até as 23h numa boa. Aí, quando chega a noite, tomo algumas gotinhas e relaxo que é uma beleza.”

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(Camila Svenson/Fotografia)

Padre Ticão declara nunca ter fumado maconha, porém diz ter o hábito de ingerir canabidiol em óleo ou folhas ou flores, que bate com o suco verde todas as manhãs. “Me sinto muito mais disposto, com muito mais energia, e bem mais feliz”, afirma. “Desde então, eu percebi como quem fuma maconha nunca fica doente. Pega essa molecada com 15, 16 anos, que fuma maconha o dia inteiro. Eles têm uma saúde de ferro.”

Após sua experiência pessoal revolucionária, no ano passado Padre Ticão desenvolveu, em parceria com a Unifesp, um curso de 20 aulas semanais sobre as propriedades terapêuticas da CBD, como se fosse uma matéria à parte dentro da disciplina neuropatia. Os encontros, que até a pandemia costumavam ocorrer na paróquia, eram abertos, com transmissão simultânea no YouTube, pelo perfil MovRecam, onde as aulas permanecem disponíveis. Entre os palestrantes, recebem referências no assunto, como a Dra. Carolina Nocetti, médica especializada no uso medicinal da cannabis e fundadora da InterCan – International Cannabis Academy. “Depois de ficar dez anos nos EUA estudando, ela decidiu voltar para o Brasil porque a prática e a legislação por aqui estão muito atrasados”, explica o padre. 

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(Camila Svenson/Fotografia)

Até serem implantadas as normas de distanciamento social, os encontros, já em sua terceira turma e atualmente na 13ª aula, estavam com uma adesão média de 400 alunos presenciais e 1.600 online, com espectadores de diversas partes do país. “As pessoas saem daqui com um sentimento de gratidão muito forte”, avalia. Os cursos funcionam em um sistema colaborativo no qual cada um doa quanto pode. “Depois das aulas fica uma fumaceira”, reconhece o sacerdote. Ele acredita que os efeitos benéficos da maconha sejam os mesmos tanto fumando a planta quanto ingerindo o óleo. “O que me preocupa, acima de tudo, é a qualidade, a pureza da maconha.” 


“Desde que descobri esse santo remedinho, acordo às 5h e vou até as 23h numa boa. Aí, quando chega a noite, tomo algumas gotinhas [de óleo de canabidiol] e relaxo que é uma beleza”

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Nem só de religião é feita uma igreja. Aqui, detalhe para a pilha de documentos mantida pelo Padre Ticão (Camila Svenson/Fotografia)

Do bom

O padre usa diversos métodos para garantir que seus fiéis ou alunos tenham acesso a um produto de qualidade. Recomenda produtores artesanais do óleo de maconha de diferentes regiões do país, por exemplo. O preço médio é de R$ 150 a embalagem com 10 ml., o que Ticão considera proibitivo, uma vez que atende muitas famílias de baixa renda do bairro que fica na periferia. “Mas, sem, elas não ficam. Distribuo a semente e as estimulo a plantarem em casa”, garante o padre, que faz cultivo próprio no jardim próximo à casa paroquial, onde sete pés de maconha convivem com outras espécies utilizadas nos estudos de fitoterápicos, como: moringa, ora-pro-nobis (planta de alto teor proteico, o que rendeu o nome popular “carne do pobre”), amora (cujas folhas são usadas em chás), carambola, jabuticaba amarela e babosa (anticancerígena, há seis mil anos era considerada no Egito a planta da imortalidade).

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(Camila Svenson/Fotografia)

Ticão diz já ter recomendado CBD (e obtido sucesso) contra as mais diversas enfermidades, como Mal de Parkinson, Alzheimer, câncer, epilepsia, doenças raras e dores generalizadas – além do uso preventivo indiscriminado. “Nos EUA, é comum usar como prevenção e acredito radicalmente. Já vi estudos de uso efetivo da cannabis contra mais de 200 doenças. A medicina do presente e do futuro obrigatoriamente passa pela canabidiol.” Atualmente, a produção e o consumo, inclusive recreativo, da cannabis são legais em onze estados norte-americanos. Ticão indica o uso inicial de uma gota de manhã, duas à tarde e três à noite, aumentando a dosagem até ingerir um total de nove gotas diárias.

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(Camila Svenson/Fotografia)

Sua abordagem parte de uma visão holística de saúde, na qual corpo e mente são uma coisa só. As dores do espírito afetam o corpo e o estado físico define o humor e a visão de mundo, ou vice-versa, enxergando-os como diferentes aspectos de um todo. Para ele, a medicina ocidental convencional tem efeito apenas tópico e paliativo, vindo a criticar até procedimentos contra o câncer como quimio e radioterapia, os quais classifica como veneno. “O mercado colocou na cabeça das pessoas essa ilusão de que vão no médico para se curar. Elas precisam entender que quem se cura é a pessoa. Ela vai no médico esperando ser receitada um remédio, e ai se não tiver remédio”, arremeda. “A saúde é um todo, tenho uma experiência altamente positiva com essa dimensão holística. Aqui, somos radicalmente contra os remédios, levando em conta tanto os efeitos colaterais como o fato de que eles causam dependência, para alimentar uma indústria. Eu declaro guerra à indústria farmacêutica.” 


“Aqui, somos radicalmente contra os remédios, levando em conta tanto os efeitos colaterais como o fato de que eles causam dependência, para alimentar uma indústria. Eu declaro guerra à indústria farmacêutica”

Do seu ponto de vista, Ticão ainda crava que a perseguição às drogas, especialmente à maconha, é resultado de décadas de lobby da indústria farmacêutica com os governos. Ele cita a oposição de Osmar Terra, notório terraplanista, à aprovação de duas propostas preliminares da Anvisa (Agência de Vigilância Sanitária), em junho do ano passado, de liberar o cultivo da planta cannabis sativa para fins científicos e medicinais, assim como a produção de medicamentos derivados da erva em solo nacional.  “Se abrir as portas do plantio, vai ter consumo generalizado”, afirmou o então ministro da cidadania. “Se não se controla com a proibição, imagina controlar no detalhe? É o começo da legalização da maconha no Brasil”, disse Terra, em audiência pública na CDH (Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa). “Ele é representante da indústria farmacêutica, essa indústria assassina, que tem um lastro muito forte no poder”, aponta Padre Ticão. “Uma vez escutei em um congresso: ‘Os traficantes são mais solidários do que os governantes’. Concordei na hora”, relembra.  

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A plantação de maconha na igreja de Ermelino Matarazzo fica guardada a sete chaves, no andar superior da construção (Camila Svenson/Fotografia)

Legal ou ilegal?

Em dezembro, a Anvisa aprovou a fabricação e comercialização do primeiro produto não medicamentoso à base de cannabis no Brasil, o Canabidiol, produzido pela empresa nacional Prati-Donaduzzi, que chegou às drogarias no início de maio. Trata-se de um óleo fitofármaco de CBD com menos de 0,2% de concentração de THC, um dos princípios ativos que dão barato. Com tarja azul, só deve ser vendido com receita, que pode ser prescrita a critério do médico. Até então, o único produto à base de maconha disponível nas drogarias era o Mavatyl, da inglesa GWPharma, com concentrações equivalentes de canabidiol e THC, receitado apenas em casos de esclerose múltipla. Para Ticão, além da receita e da dosagem, o preço é proibitivo. O frasco de 27 ml de Mevatyl custa cerca de R$ 2.900 no mercado, enquanto o vidro de 30 ml do Canabidiol chega às prateleiras com o preço promocional de R$ 2.150.


“Se você é cristão e se diz contra a maconha, você não está lendo a Bíblia”

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(Camila Svenson/Fotografia)

Para corroborar sua tese, Padre Ticão cita ainda o papel de John Davidson Rockefeller, magnata norte-americano que no começo do século passado, pela empresa Standard Oil, controlava 90% das refinarias de petróleo dos EUA. Na mesma época, cientistas descobriram os petroquímicos, classe de medicamentos que prometiam um alto retorno de investimento, pela facilidade na patente, cuja matéria-prima, o petróleo, Rockefeller já controlava. Assim, ele viu a oportunidade de monopolizar as indústrias petrolífera, química e medicinal, que à época era dominada por medicamentos naturais, uma vez que quase metade dos médicos nos EUA eram adeptos de algum tipo de medicina holística. “A família Rockefeller uniu os mais ricos para lucrarem com a saúde”, define Ticão. “Foi isso que, com o tempo, levou a maconha a ser demonizada em tantas partes do mundo, como no Brasil acontece há mais de 70 anos.”

É preciso observar também o aporte financeiro da indústria lobista somado à patrulha moral, tão cultivada como disseminada nas igrejas cristãs, como a católica. Ticão, no entanto, não enxerga contradição. Em sua opinião, cristãos avessos à maconha simplesmente não entenderam a Bíblia. Ele cita Gênesis, 1:29,30, que diz: “E disse Deus: Eis que vos tenho dado toda a erva que dê semente, que está sobre a face de toda a terra; e toda a árvore, em que há fruto que dê semente, ser-vos-á para mantimento. E a todo o animal da terra, e a toda a ave dos céus, e a todo o réptil da terra, em que há alma vivente, toda a erva verde será para mantimento; e assim foi.” “Ou seja, se você é cristão e se diz contra a maconha, você não está lendo a Bíblia”, crava Ticão. 

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(Camila Svenson/Fotografia)

O infiltrado

Apesar de achar que os jovens deveriam ter uma conexão mais forte com o culto, Ticão diz não promover o uso cerimonial da maconha ou de qualquer outra substância. “É mais uma preocupação com a saúde, mesmo.” Em sua paróquia, diz já ter recebido adeptos de rituais espirituais com cogumelos alucinógenos e ayahuasca, o que não recrimina, dizendo ter pouco conhecimento a respeito. Isso que ele critica: o julgamento não-embasado, como na igreja evangélica, por exemplo. “Com evangélico, não tem diálogo”, afirma.  “Deus perdoa o pecado, mas não perdoa a ignorância.”

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“Visito delegados, coronéis, levo as cartas que produzimos durante os cursos para eles verem que não é brincadeira. Peço para não mexerem com as famílias que estão fazendo a substância”

No ano passado, a paróquia Francisco de Assis Ermelino Matarazzo realizou a 36ª Semana da Juventude, que teve participação da organização Católicas pelo Direito de Decidir, que defende a descriminalização do aborto. Conversas sobre racismo, políticas públicas, juventudes, uma celebração ecumênica e uma romaria de jovens à Basílica de Nossa Senhora Aparecida integraram a programação. Ao fim do evento, padre Ticão recebeu uma ameaça de morte por grupos conservadores da própria igreja católica.

Ele diz não temer represálias das autoridades ou de grupos extremistas por conta do uso que promove da maconha. “Falo a respeito da cannabis em todas as missas, todo mundo já sabe. E todos na comunidade me conhecem”, explica. “Visito delegados, coronéis, levo as cartas que produzimos durante os cursos para eles verem que não é brincadeira. Peço para não mexerem com as famílias que estão fazendo a substância.” 

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(Camila Svenson/Fotografia)

Enquanto prossegue com suas atividades que visam o bem da população, padre Ticão diz que sua consciência católica está na mais santa paz. Para ele, algo criado por Deus não deveria ser visto como tamanha ameaça. “Deus é canabista. Quando ele estava no barro, ficou um fiapo da cannabis”, brinca o sacerdote.

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Essa reportagem foi fotografada por Camila Svenson. Confira mais do seu trabalho clicando aqui.

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