
izem que as notícias voam. Mas como permitir que atravessem uma imensidão de terras, águas e árvores que compõem a Amazônia? Comunicação por lá é desafio quase tão grande quanto contabilizar a maior biodiversidade do planeta. E é justamente quem protege essa biodiversidade que dá voz aos fatos amazônicos.
A pontinha do mapa do Amazonas, no noroeste do estado, é conhecida como a “cabeça do cachorro” por conta de seu formato . Mas bem que poderia ser Torre de Babel. Não há outro canto do país onde tantas línguas se fundam, se conversem, se entrelacem. Na região de São Gabriel da Cachoeira vivem 420 comunidades indígenas, de 23 etnias, que falam 19 idiomas. E por isso a cidade tem como línguas oficiais: nheengatu, yanomami, tukano, baniwa e o português. Na venda da esquina, na secretaria de educação, em qualquer comércio ou repartição pública há sempre quem fale múltiplos idiomas.
Para fazer com que as notícias da cidade cheguem às populações das aldeias mais distantes, nasceu em 2017 a Rede Wayuri. “A comunicação sempre foi uma preocupação aqui. Em 2016, na época das eleições, começaram a surgir muitas fakes news sobre demarcação de terras indígenas, sobre os direitos dos povos tradicionais. Precisávamos narrar a versão verdadeira, mostrar o ponto de vista dos indígenas. Fizemos um diagnóstico de comunicação junto com o Instituto Socioambiental, que é nosso parceiro. O resultado mostrou a necessidade de criar uma forma de comunicação que estivesse também presente nas comunidades. Nasceu assim a Rede Wayuri”, conta Raimundo Benjamin, baniwa responsável pela comunicação da FOIRN, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro.
Wayuri, em nheengatu, significa trabalho coletivo, mutirão. Para marcar a estreia, o maior artista da região, Feliciano Pimentel Lana, líder do povo Desana, morto aos 84 anos pela Covid-19, registrou com seus traços magistrais o símbolo: a imagem de um comunicador rionegrino animado falando ao microfone, em frente à montanha Bela Adormecida, cartão postal do Alto Rio Negro.

Unida pela Amazônia, a equipe conta com 26 comunicadores de 10 povos. Divididos entre aldeia e cidade, a rede tem correspondentes espalhados pela gigantesca bacia hidrográfica do Rio Negro, um território maior do que Portugal. Há repórteres às margens do Içana, Ayari, Uaupés, Tiquié, Jurubaxi e no Baixo, Médio e Alto Rio Negro. Cada calha conta com correspondentes locais, com a função de enviar para a capital indígena, a sede urbana de São Gabriel, informações importantes de sua “área de cobertura”.
Em São Gabriel, comunicadores se desdobram na produção, redação e tradução das notícias. A locução e edição dos boletins também é atribuição deles, no corre-corre do factual. Gravado no celular e editado em software livre, o áudio final é colocado em plataformas modernas como o Soundcloud e o Spotify, mas decola mesmo para os ouvintes do Rio Negro pela distribuição via WhatsApp. Como muitas aldeias não contam com acesso à internet, as notícias viajam por dias de barco, compactadas em pendrives. Minúsculos folhetins, imensos na quantidade de informações. “Nas terras indígenas se espalham graças à rádios-postes. É um megafone preso em um poste, ligado à uma mesa de áudio. As pessoas são reunidas para ouvir os boletins e saber o que está acontecendo”, explica Claudia Ferraz Wanano, locutora-repórter-editora da rede.

Carros de som se tornam veículos de informação, literalmente, quando a notícia é urgente. O combate à Covid-19 e à malária, por exemplo, exigiu que os informes ganhassem as ruas. “A informação salva vidas. Durante a pandemia percebemos que os indígenas tinham muita dificuldade para compreender as orientações médicas repassadas em português. Cada correspondente traduziu para o seu idioma. Explicamos como cuidar das famílias, respondemos as dúvidas, tudo nas línguas indígenas”, orgulha-se Claudia.
“A informação salva vidas. Durante a pandemia percebemos que os indígenas tinham muita dificuldade para compreender as orientações médicas repassadas em português. Cada correspondente traduziu para o seu idioma. Explicamos como cuidar das famílias, respondemos as dúvidas, tudo nas línguas indígenas”
Claudia Ferraz Wanano
Distribuindo notícias aos 4 ventos pelos informativos em áudio, as cartilhas nas línguas tradicionais, o envio diário de boletins pela radiofonia da FOIRN, o famoso canal 790 do Alto Rio Negro, os comunicadores da floresta foram fundamentais para ajudar as autoridades sanitárias a educar a população, controlar a disseminação e evitar que o número de mortes fosse ainda maior. “O importante da rede é abarcar, é contemplar toda essa diversidade. As notícias são geradas por comunicadores indígenas pertencentes a várias etnias, produzindo conteúdo nas suas línguas e com seu sotaque, seu jeito, com as suas expressões, com a sua forma de narrar. Eu, por exemplo, como jornalista não-indígena, que veio para cá para trabalhar com a formação dessa rede de comunicadores, tenho o desafio de trabalhar a técnica do jornalismo, orientar e apoiar esse coletivo, mas ajudar a construir um jeito de fazer comunicação que é amazônico, que é indígena, e que tem o sotaque do Rio Negro”, define Juliana Radler, do Instituto Socioambiental.
O trabalho em mutirão rendeu ao coletivo o reconhecimento da ONG francesa Repórteres Sem Fronteiras. A equipe da Rede Wayuri está entre os exaltados “Heróis da Informação”, lado a lado com profissionais consagrados da imprensa mundial. Mas enquanto repórteres mundo afora contam com 5G ou com internet por fibra óptica para fazer a notícia chegar rápido aos espectadores, os comunicadores da floresta operam milagres diários para transmitir a informação. Sem internet banda larga, a melhor conexão no município é via satélite oferecida pelo Gesac, satélite brasileiro público, sigla de Governo Eletrônico – Serviço de Atendimento ao Cidadão. Para se ter uma ideia, essa conexão não ultrapassa pífios 10 mega e sempre está sujeita às intempéries climáticas. Bastou o tempo fechar e a internet cai, o que acontece quase todo dia na floresta com maior densidade de chuvas do planeta.

O acesso é fraco, frágil e caro. Os pacotes de internet de 1 mega, em São Gabriel da Cachoeira, custam cerca de R$ 300 por mês e o cliente mal consegue ver um vídeo no YouTube. Em São Paulo, por exemplo, o consumidor paga R$ 100 por 120 mega de fibra óptica. A internet móvel ainda não dá conta do recado, pois, apesar das grandes demanda, expectativa e necessidade, há poucas antenas instaladas pelas operadoras e pouco interesse em resolver o dilema amazônico da comunicação eficiente.
As consequências não atrapalham apenas o avanço da informação por distâncias enormes, mas também as aulas dos professores, o trabalho na prefeitura, o acesso da população aos programas sociais, ao sistema de saúde, etc. A alternativa é usar aplicativos como o ShareIT, sem necessidade de internet, e por aí os áudios vão ganhando o território e chegando aos ouvintes.