ocê sabe o que é ser negro e nordestino no Brasil? Ouça o sambista Toinho Melodia e terá a resposta. Se o seu nome não soa familiar, permita-se conhecê-lo (e ouvi-lo). Nascido Antônio Freire de Carvalho Filho em 1950, o pernambucano de Recife desembarcou em São Paulo ainda criança para conquistar o respeito dos bambas e fazer história nas rodas de samba e no carnaval paulistano.
Mesmo com uma trajetória de mais de cinco décadas, seu primeiro trabalho autoral foi lançado apenas em 2018, o álbum Paulibucano (mistura de paulista com pernambucano), que só se tornou realidade após uma vaquinha online. Hoje, muitos são os livros e filmes que trazem teorias sobre racismo, mas o “veinho”, como gosta de ser chamado, pediu licença para contribuir com o debate com suas letras carregadas de relatos autobiográficos. De sua casa na Vila Moinho Velho, Toinho Melodia bateu um longo papo com a Elástica sem poupar detalhes de sua história de vida, os bons e ruins.
Essa reportagem vai muito melhor com as músicas de Toinho e uma cervejinha pra acompanhar:
Dono da malandragem típica do samba, o artista soube desde pequeno o que significa ter pele negra no Brasil. E também aprendeu a se defender à sua maneira “Tinha 10 anos e um branquinho me chamou de macaco. Eu acertei uma pedrada e lasquei a cabeça dele. Ainda bem que eu estava prestes a vir para São Paulo, senão iam dar cabo de mim. Ele era de uma família com poder aquisitivo maior, ia ficar ruim para mim. A minha avó me levou para a casa dela e eu fiquei lá até me mandarem o dinheiro para viajar. Minha avó Isaura tomava as minhas dores”, recorda Toinho, hoje com 70 anos.
Assim que pisou na Vila Maria, bairro na zona norte da capital, o gentílico pernambucano foi resumido a “baiano”, como são identificados muitos que vêm do Nordeste em busca de uma vida melhor. “Pode ser cearense ou mesmo pernambucano / Mas chegando em São Paulo tem que ser baiano”, ele resume ao cantar o xote “Tudo é baiano”, de Aloísio Gomes. Era comum ficar furioso nessas ocasiões, sentimento que guarda até hoje, porém o conselho que recebeu de seus mestres Toniquinho Batuqueiro e Talismã era calar toda e qualquer ofensa com sua voz cantada.
“Era um negócio de dar raiva, eu queria grudar na goela da pessoa. Sou pernambucano e sou gente, carai. O preconceito contra o negro sempre existiu, hoje eu vejo que com o nordestino diminuiu, mas está aí. Mesmo os [preconceituosos] enrustidos, a vontade que tenho é dar porrada. Dão sorte que eu estou velho, senão era guatambu [árvore de madeira dura] neles. Comigo essas ideias nunca prosperaram porque eu sempre respondi à altura e mandava esses caras estudar”.
“O preconceito contra o negro sempre existiu, hoje eu vejo que com o nordestino diminuiu, mas está aí. Mesmo os [preconceituosos] enrustidos, a vontade que tenho é dar porrada. Dão sorte que eu estou velho”
Com o samba como referência, foi descoberto em uma roda de samba ainda aos 18 para anos mais tarde ser puxador no carnaval paulistano em agremiações como Unidos de Vila Maria e Vai-Vai. Em suas canções, que mesclam o ritmo do pandeiro e do cavaquinho com coco, xote e baião do Nordeste, denuncia as injustiças sofridas por minorias sociais, como os moradores de favela, os nordestinos, as mulheres e, claro, os negros.
Liberdade sofrida
Ainda muito jovem, Toinho percebeu a dificuldade de viver somente da arte no Brasil. Começou a trabalhar como pintor de parede aos 13 anos, ofício que levou consigo por mais de quatro décadas. Em 1974, no período mais truculento da ditadura militar, Melodia viveu um entre tantos episódios de racismo, com a diferença de que essa memória amarga se transformou em música em 2020, provando que a sociedade brasileira ainda precisa avançar muito no respeito à população negra.
“Os homens pararam a minha caranga / Deram um baculejo na minha capanga / Nada constou, nada constou, meu senhor / Sou só trabalhador”. Esses são os primeiros versos de “Liberdade Sofrida”, canção que reflete o passado e o presente do racismo estrutural no Brasil.
“Eu comprei um Dodge Polara vermelho [moderno veículo pequeno-médio], zero quilômetro, e tinha dois serviços para fazer. Abri a porta do carro para pegar ferramentas, uns policiais viram e acharam estranho um preto abrir um Polara. Eu estava no meio de muita gente, mostrei meus documentos, mas eles revistaram mesmo assim. Reviraram, não acharam nada e saíram com aquela cara de merda”, relembra.
Incontáveis foram as vezes que Toinho Melodia esbravejou em abordagens policiais frases como “puta que pariu, como é difícil ser negro nessa porra dessa terra”. Não à toa o assunto virou tema de outra canção, “Le Bolívia”, do seu álbum de estreia. A letra conta a história de um malandro que foi morto pelo dono do morro e o cantor encerra com uma mensagem falada, clamando que “o genocídio da juventude negra do Brasil precisa acabar”.
No dia dessa entrevista, o sambista lamentava a morte de Guilherme Silva Guedes, 15 anos, suspeito de ter sido assassinado com dois tiros na cabeça por um policial militar em São Paulo. “Às vezes até evito de olhar as notícias porque isso me deixa triste e irritado. Tomo um remédio para pegar no sono. Não é medo de enfrentar a realidade, não, é que me choca mesmo. Um jovem parado na frente de casa é morto desse jeito. Isso me mata, cara. Lembro também dos caras ‘encurralados’ no baile funk em Paraisópolis… Fico triste de ver o extermínio da juventude negra.”
A vida na rua
Mas nem só de samba é feita a vida de Toinho Melodia. Ele conta com pesar que se afastou das apresentações e do carnaval por 24 anos após se desentender com a diretoria da Unidos de Vila Maria, até então sua escola do coração. Com a fala pausada, relembra a dor da decisão, motivada também pela família que constituiu com sua ex-mulher e os quatro filhos que tinha que alimentar.
Foi nesse intervalo que ele descobriu uma doença que iria mudar sua vida. Com mais de 50 anos, foi diagnosticado com um câncer na próstata que o impossibilitou de trabalhar. Sem guardar segredos dessa face difícil de sua vida, Melodia chegou a viver em situação de rua. Longe de contato com a família ou amigos, ele vagou sem rumo pela cidade por dois anos e meio por acreditar que “morreria à míngua” no hospital sem poder levar o sustento para casa.
Curiosamente ou não, cerca de 70% da população de rua de São Paulo se identifica como preta ou parda, de acordo com censo de 2019 da prefeitura. “A rua só não foi pior porque a minha vivência e malandragem sempre falaram mais alto, senão tinha sido cruel. Qualquer um no meu lugar tinha perdido a cabeça. Na rua, você não tem dia e nem tem hora. Todo dia é a mesma coisa, um filho de mãe sempre chora. Eu acho que a minha bondade melhorou um pouco algumas pessoas que viviam sem esperança e sem perspectiva. Dizia que ia dar tudo certo”, conta, hoje recuperado da doença.
A volta do bamba
Tudo voltou a dar certo para Toinho Melodia após ser encontrado na rua por um amigo. Posteriormente, recebeu acolhimento de outros colegas, como Chapinha da Vela, criador do Samba da Vela. Seu retorno ao samba se deu por volta de 2009, quando foi descoberto na plateia de um show de seu mestre Toniquinho Batuqueiro, hoje falecido, e ser convidado para subir ao palco. Até reunir músicos e produtores de confiança, o Conjunto Picafumo e André Santos e Rodolfo Gomes, respectivamente, entrar em estúdio e gravar aquele que seria seu primeiro trabalho ainda demorou cerca de dez anos.
“A rua só não foi pior porque a minha vivência e malandragem sempre falaram mais alto, senão tinha sido cruel. Qualquer um no meu lugar tinha perdido a cabeça. Eu acho que a minha bondade melhorou um pouco algumas pessoas que viviam sem esperança e sem perspectiva”
Um dos remanescentes do samba paulistano, o “veinho” é acompanhado por músicos jovens, a quem ele chama carinhosamente de “moleques”. O frescor da juventude também se reflete em seu trabalho em uma incursão na música jamaicana, em um projeto batizado de Toinho Dub, encabeçado pelo produtor Pedro Lobo. Sem deixar o samba de lado, o setentão investiu em arranjos carregados de sintetizadores e trombones para criar novas versões de músicas de seu trabalho de estreia, além da inédita e já mencionada “Liberdade Sofrida”.
Com muita humildade, Toinho fala que só queria ter um registro de seu trabalho, porém tem se surpreendido com a repercussão, principalmente entre o público jovem. “Eu só conhecia Bob Marley [de música da Jamaica]. Quando me veio a proposta, fiquei meio desconfiado. ‘Isso é coisa certa? Eu sou o Toinho Melodia, carai’. Mas assim que entrei no estúdio, falei: ‘se eu soubesse que seria assim, teria feito antes. Fico muito alegre de ver minha música cabe no dub”, confessa.
Encarando de frente a quarentena, Toinho Melodia aproveita o tempo dentro de casa para compor e apresentar letras aos seus parceiros. Participou de uma live em comemoração aos seus 70 anos. Entre trechos cantados de músicas ainda incompletas, o artista negro e pernambucano que tem orgulho de suas origens adianta que seu segundo álbum de inéditas deve sair em breve. “Estamos batendo para ser ainda este ano. Mas não temos que ter pressa, porque com pressa não se faz nada que presta.”