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Especial Manaus: o último adeus

Sem funerais abertos e sem espaço para tantos corpos chegando ao mesmo tempo, como é o drama de quem precisou enterrar entes queridos na pandemia?

por Erika Sallum 27 ago 2020 02h00
O

cemitério municipal Nossa Senhora da Aparecida, em Manaus, ganhou fama macabra no início da pandemia, quando a capital do Amazonas se tornou um dos epicentros mundiais das contaminações. Dos Estados Unidos até a Austrália, jornais e revistas de vários países estamparam as enormes valas abertas às pressas para receber centenas de vítimas da covid-19. Além dos coveiros fazendo hora extra paramentados com roupas de plástico cavando buracos em um calor infernal, outra imagem local ficou gravada na memória: o mar de cruzes azuis.

Essa é a quarta parte do nosso especial sobre a pandemia do coronavírus em Manaus. A primeira, sobre um funeral realizado em casa contra todas as normas de segurança devido à pandemia do coronavírus, você confere aqui.

Leia também a segunda reportagem da nossa série, sobre a precariedade em infraestrutura que boa parte da capital amazonense sofre.

Na terceira parte, mostramos a rotina e os improvisos dos médicos e profissionais de saúde para conter uma crise que só aumentou com o passar dos dias. Leia aqui.

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Feitas de madeira barata, mal cortadas

e mal pintadas ali mesmo entre os túmulos, as cruzinhas quase singelas se tornaram símbolo de uma cidade sem recursos ou conhecimento para lidar com a doença (ou com o desmatamento, o garimpo ilegal, a ocupação urbana desordenada). Porta de entrada de importações, Manaus recebeu o vírus misterioso a partir de sua zona portuária, e o desgraçado se comportou como fagulha em palheiro, espalhando-se velozmente por bairros pobres. Só no Amazonas, segundo dados oficiais, foram mais de 116 mil casos e 3.500 mortes — mas esses números são pouquíssimo confiáveis, em especial diante de uma leva gigantesca de óbitos de causas mascaradas pelas autoridades.

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(Caio Guatelli/Fotografia)

Se o governo conseguiu esconder tantas vítimas em seus gráficos, o cemitério de Nossa Senhora da Aparecida fez o contrário, escancarando os mortos sob cada cruz azul mal ajambrada. Para conseguir uma dessas cruzes identificando seu ente querido, é preciso desembolsar 120 reais. Quer acrescentar a data de nascimento e morte? Mais 120 mangos, com o serviço feito ali mesmo, na hora do enterro, com pincel e tinta preta.

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(Caio Guatelli/Fotografia)

A despedida fica ainda mais dolorida na era do coronavírus. Morto de covid não pode ter velório. Em um espaço a poucos metros das valas, foi montado um toldo, e cada família tem 5 minutos para dar o último adeus, em uma cerimônia deprimente onde o som do lamento cronometrado se mistura ao de escavadeira barulhenta abrindo mais buracos de uns 15 metros de largura por 2 metros de altura, suficiente para caber muitos cadáveres. Após a transação financeira, além da cruz, é colocada uma moldura de madeira “mais ou menos” onde deveria estar cada corpo, porém tudo é meio aproximado, ainda mais na correria contra o temporal diário que assola o lugar.

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(Caio Guatelli/Fotografia)

Tempestade ali parece música de Chico Science — vira rapidamente uma cena da lama ao caos. O cemitério, o maior da cidade, foi erguido em um terreno inclinado. O aguaceiro transforma o chão de terra em lodo, que vai escorrendo morro abaixo, formando riachos lúgubres que varrem tudo o que vê pela frente, incluindo os parentes dos defuntos. Não há guarda-chuva comprado em camelô que resista. O chinelo de dedo, mesmo ali no meio das covas, quase vai embora junto com a chuva forte.

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(Caio Guatelli/Fotografia)

Os caixões não são lacrados, e muita gente que morreu de covid, mas não tinha atestado, acabou parando no Nossa Senhora da Aparecida. Nesse caso, a família costuma pressionar para o coveiro não enterrar o parente na ala do coronavírus. Ninguém quer ficar marcado, então melhor dizer que a pessoa morreu de morte morrida mesmo.

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(Caio Guatelli/Fotografia)

Os jornalistas podem acompanhar os cortejos fúnebres, no entanto apenas por duas horas, das 9h às 11h. Com “sorte”, pegam uma chuvarada e conseguem ficar um pouco mais e fazer fotos dramáticas de um cemitério cercado pela maior floresta do planeta, enfeitado com cruzinhas azuis.

Seria até bonito, se não fosse o retrato de um Brasil que tem tanta riqueza, mas acaba quase sempre na lama.

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