
o olhar Lorena Eltz de camiseta larga e calças, provavelmente passará despercebido que ela vive há oito anos acompanhada de uma bolsa de colostomia. Mas se engana quem pensa que ela escolhe essas roupas para esconder o objeto. Atualmente, ao entrar na página no Instagram da influenciadora, é possível conferir uma mescla de fotos de biquíni, top, cropped, shorts jeans e qualquer outra peça que a gaúcha sentir vontade de usar. O processo para chegar até aqui e virar uma referência no assunto não aconteceu, porém, da noite para o dia. Há seis anos produzindo conteúdo para a internet, Lorena resolveu “se livrar desse segredo” – como ela mesma diz – somente em 2020, durante a quarentena causada pela pandemia da covid-19. Desde então, ganhou milhares de seguidores – recentemente, passou a marca de 500 mil no Instagram – e teve vídeos no YouTube que bateram um milhão de visualizações.
Com fala leve e didática, a influenciadora fala abertamente sobre tabus e assuntos frequentemente excluídos por uma sociedade capacitista, como cocô, xixi, hospital, remédios e tratamentos. Além disso, compartilha experiências e vivências sobre ser uma mulher lésbica e com deficiência. Lorena foi diagnosticada aos cinco anos com doença de Crohn, uma condição intestinal inflamatória e crônica que afeta o revestimento do trato digestivo. Foram muitas tentativas de tratamento, incluindo um transplante de células tronco, feito em 2016, além da remoção de boa parte do intestino grosso. Por causa disso, precisou colocar uma bolsa de colostomia, que é acoplada ao intestino e utilizada para a eliminação das fezes de maneira prática e higiênica. Essas bolsas coletoras também podem ser utilizadas por outras pessoas ostomizadas, de forma permanente ou temporária, para a eliminação de dejetos, como gases, urina ou fezes.

Em seus conteúdos, a jovem força as pessoas a se depararem com realidades que muitas vezes são escondidas e questionar as suas próprias atitudes. Afinal, quem não fez piada, riu dos memes e ridicularizou quando Jair Bolsonaro precisou usar uma bolsa de colostomia após sofrer um atentado com faca durante a campanha presidencial? A realidade em que o então candidato ficou por 144 dias é, no entanto, o dia a dia de cerca de 207 mil pessoas no Brasil, segundo estimativa da Associação Internacional de Ostomia, que muitas vezes são esquecidas pela mídia, pelo governo e pela própria sociedade. Cansada da falta de representatividade, de ser “exemplo de superação” ou de ser enxergada com pena, Lorena decidiu se dedicar a falar sobre saúde e desconstruir o estigma de que a doença crônica é um atestado de uma vida de sofrimento.
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Como foi o processo de começar a falar mais abertamente sobre o uso da bolsa de colostomia e da doença de Crohn? E a recepção das pessoas?
Eu tenho a bolsa desde os 12 anos de idade e comecei a produzir conteúdo pra internet em 2015, sempre falando da minha vida. As pessoas já sabiam que eu tinha a doença, mas nunca quis que o foco fosse esse, porque eu não queria que as pessoas me conhecessem por isso. Eu tinha um bloqueio muito grande de que as pessoas iriam para um lado capacitista de pena, então sempre neguei muito, principalmente em relação à bolsa, porque eu não falava para ninguém que usava, nem no meu círculo social. Mas tudo começou a mudar em 2018, quando comecei a ficar mais velha e me sentir mais presa do que livre. Quando aconteceu o caso do Bolsonaro, fiquei muito tentada a falar sobre, porque mexeu muito comigo. Quando começou a quarentena, entrei em um processo muito doido de autoconhecimento e realmente caiu a ficha para mim de que o que era mais importante na minha vida era a minha saúde, e eu já recebia muitas perguntas sobre isso. Pensei que, como eu estava de quarentena, se eu postasse uma foto com a bolsa de colostomia, não teria que lidar com ninguém, já estava isolada em casa mesmo, não precisaria sair na rua e ninguém iria me perguntar. A decisão de postar a foto com a bolsa foi muito pessoal, de querer me livrar desse segredo e levantar uma bandeira na internet, até porque eu imaginava que, quando eu postasse, as pessoas não iriam entender muito bem e ia passar despercebido, elas não iriam querer saber sobre. Mas foi totalmente o contrário: no mesmo dia, comecei a receber muitos comentários, as fotos já foram compartilhadas em outros sites, foi algo que eu não estava esperando. Comecei a perceber que existiam muitas pessoas que também usavam e estavam precisando daquilo na internet. Foi um processo de aceitação meu, mas também do fato de que eu ia precisar continuar falando sobre isso.
“Comecei a perceber que existiam muitas pessoas que também usavam e estavam precisando daquilo na internet. Foi um processo de aceitação meu, mas também do fato de que eu ia precisar continuar falando sobre isso”
Eu recebi muitos comentários, dúvidas, e vi que não ia poder ficar em uma só foto. Aí postei o primeiro vídeo, que chegou muito rápido em um milhão de visualizações. Como eu já trabalhava com informação, pensei que tinha chegado a hora e que eu estava pronta para mudar o meu nicho para isso, já que não achei muita gente falando sobre. Percebi muita diferença, até porque, quando eu postei a primeira foto, eu tinha 80 mil seguidores – desde então, cresci muito, são pessoas que chegam em mim justamente por causa desse conteúdo, que hoje é definido pela saúde, PCDs e doença crônica. Antes eu me sentia perdida e, agora, está muito mais nichado.

Por ser uma mulher com deficiência e lésbica, como foi para você a discussão sobre a sua sexualidade? E qual a importância de falar abertamente sobre isso?
Ainda estou aprendendo a lidar. Quando eu me assumi PCD, já era assumidamente lésbica, e as pessoas às vezes não ligam uma coisa a outra, muita gente me conhece por ser lésbica e muita gente não sabe ainda que eu sou. De nenhuma forma eu escondo isso, mas, no momento em que a gente está, tenho muito cuidado como eu vou falar sobre esse assunto, principalmente tratando de uma PCD, em que a sexualidade não é nem cogitada. As pessoas nunca me perguntavam sobre namoro, nunca apareceram essas dúvidas, porque elas não achavam que eu fosse namorar. Quando me assumi lésbica, foi uma surpresa para todo mundo.
Eu tento falar que a deficiência não me impede, que sentimos outras coisas normalmente, e acho que é muito importante falar sobre isso. As pessoas não querem abordar esse assunto. Por exemplo, quando tem um casal de PCDs na internet, as pessoas acham aquilo o auge. Mas estou tentando ver como abordar esses dois assuntos, porque de forma alguma eu quero que as pessoas parem de me seguir porque eu sou lésbica. Eu nunca quis falar especificamente sobre o tema LGBTQI+, demanda muita responsabilidade… Eu não escondo nada, mas é bem delicado. Quero falar sobre a sexualidade das PCDs também. Acontece muito delas serem largadas porque ficaram doentes, ou começaram a usar bolsa de colostomia – os filmes, a retratação, é tudo muito capacitista.
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Queria que você me contasse como se sentiu e o que achou dos memes que foram feitos com o presidente Jair Bolsonaro enquanto ele usava a bolsa de colostomia.
Foi nesse momento que eu percebi o quanto as pessoas não sabiam sobre o assunto. Eu não sou a favor dele, entendo as piadas, entendo que o ataque era direcionado a ele e não à condição de saúde, mas é a ignorância das pessoas sobre o assunto. Na primeira oportunidade, acabam transformando esse tabu em piadas grosseiras e muita gente acaba se magoando. Para as pessoas que têm doença inflamatória intestinal e que precisam ir muito ao banheiro, cuidar do que comem, ver tantas piadas sobre isso pode ser difícil, principalmente para quem teve o diagnóstico recente. Foi bem complicado para mim, várias vezes eu entrava no Twitter e saía chorando. Por exemplo, as pessoas postavam fotos dele saindo da cirurgia, me lembrava muito da minha cirurgia e era um gatilho para mim. Achei que estavam brincando com uma coisa muito séria e isso me afetou bastante.
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Como é ter como profissão a produção de conteúdo para a internet? Principalmente levando em consideração que é frequente que você passe vários dias no hospital internada, e que acontece muito capacitismo no ambiente profissional…
Desde o início, eu não tinha pretensão de que isso virasse meu trabalho, porque, quando eu era mais nova, sonhava muito em fazer faculdade, pós, mestrado e trabalhar muito. Só que, conforme o tempo foi passando, percebi que talvez essa não poderia ser exatamente a minha realidade justamente pela minha saúde. Criei o canal no YouTube nas férias para me distrair, eu ficava muito tempo no hospital e sem ter o que fazer. Hoje, não sei que outra profissão eu poderia ter além dessa, levando em consideração a flexibilidade de horário, que eu posso trabalhar como eu consigo. Ao longo desse último ano, comecei a realmente ganhar dinheiro com isso, mas como trabalho por conta, não tenho salário fixo, preciso saber me organizar bem. Apesar de tudo, consigo conciliar, estando em casa ou internada.
“Não sou a favor dele [do Bolsonaro], entendo as piadas, entendo que o ataque era direcionado a ele e não à condição de saúde, mas é a ignorância das pessoas sobre o assunto. Na primeira oportunidade, acabam transformando esse tabu em piadas grosseiras e muita gente acaba se magoando”
Quando eu fico em crise, a criação de conteúdo é o que uso pra me distrair, senão eu iria me afundar, só ficaria me lamentando e iria pra outro lado que nunca quis. Meu trabalho faz com que eu precise ter coisas pra fazer, me movimente… E, apesar de demandar muito do meu tempo, não é o essencial, porque pra mim, a minha prioridade é a minha saúde. Às vezes, as pessoas escrevem: “você está gravando no hospital, vai descansar, vai melhorar.” Mas é algo que eu faço que me deixa bem. Uma coisa que aprendi com a doença na minha vida é que, se eu fosse esperar para ficar bem, não faria nada nunca. Eu gravo do jeito que for. Se precisar parar, continuo depois, e assim vou indo. Eu também me tornei alguém muito mais aberta para falar de mim, me descobri em várias áreas que eu nunca achei que ia me destacar. Na escola, eu não tinha muitos amigos, era muito tímida, e nunca imaginei que eu ia estar na frente da câmera.