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Lélia Gonzalez, a intérprete do Brasil

Pensadora brasileira colocou os elementos socioculturais do país no divã da terapia, alinhando psicanálise, filosofia e candomblé em suas análises críticas

por Júlia de Miranda Atualizado em 17 mar 2021, 11h41 - Publicado em 2 dez 2020 00h51
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(Clube Lambada/Ilustração)

uitos de vocês, ao lerem o título desse texto, devem ter se perguntado:Quem é Lélia Gonzalez?” Tal atitude não é de se estranhar, mas deveria. No imaginário brasileiro, quando se pensa na figura do intelectual, ela não é negra e tampouco feminina. Atribuem-se comumente tais aptidões de produção e verbalização do conhecimento ao homem branco elitizado, o estereótipo próximo a Caio Prado Junior ou a Fernando Henrique Cardoso.

Aliás, estudar filosofia e ciências humanas no Brasil é estudar, na maioria das vezes, unicamente autores europeus, já que convivemos dentro das universidades com uma ementa de curso e um corpo docente majoritariamente embranquecido. Um dos grandes equívocos profundamente arraigados desde o período colonial é o de se pensar o país como um território branco. Para além da soma dos números do IBGE – 56,10% de pessoas se declaram negras no Brasil – nossa língua, comida, música, festas populares, além de diversas crenças e tradições, são oriundas da herança e dos símbolos afros. Não se esqueçam que temos a maior população negra do mundo fora do continente africano.

Em sua última passagem pelo país, em outubro de 2019, a filósofa estadunidense Angela Davis demonstrou espanto justamente pelo fato de a gente não (re)conhecer o infinito legado e importância do trabalho da sua colega Lélia Gonzalez: “Vocês não precisam de mim, vocês têm Lélia. Leiam Lélia”, comentou em suas palestras. E parafraseando a própria Lélia, “cumé que a gente fica” ao tomar consciência de tantas distorções históricas que glorificam o passado colonial e escravocrata que não só aliena, como também excluí e apaga (o epistemicídio dos saberes e presença não-hegêmonicos) todas as contribuições negras e indígenas do nosso mapa da existência? A gente fica inquieta e a fim de saber umas verdades: esse é o convite para mergulhar na obra de Lélia Gonzalez, uma mulher à frente do seu tempo.

“Vocês não precisam de mim, vocês têm Lélia. Leiam Lélia”

Angela Davis

Antropóloga, historiadora, geógrafa, filósofa, tradutora (fluente nos idiomas espanhol, inglês e francês), professora, pesquisadora, intelectual, política e notada militante dos movimentos negro e feminista nas décadas de 1970 e 1980, a mineira Lélia foi a penúltima de 18 irmãos. Filha de um pai negro e ferroviário e mãe de ascendência indígena, Lélia de Almeida foi viver ainda criança com a família no Rio de Janeiro, quando um de seus irmãos foi convidado para jogar futebol no Flamengo. Aluna dedicada na escola de ensino público, obteve formação erudita clássica e seguiu sua caminhada acadêmica na Universidade do Estado da Guanabara, hoje Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). O sobrenome Gonzalez vem do casamento com o espanhol Luiz Carlos Gonzalez, amigo da faculdade que morreu, por suicídio, um ano depois da união. A família dele não aceitava a relação inter-racial, e estar diante da dura realidade do racismo fez com que Lélia imergisse em duas áreas significativas em seus processos de cura, autoconhecimento e de tornar-se negra: a psicanálise e o candomblé.

Lélia Gonzalez e Angela Davis nos Estados Unidos, em 1984
Lélia Gonzalez e Angela Davis nos Estados Unidos, em 1984 (Intervenção sobre foto de arquivo/Divulgação)

Sua produção teórica, singular e inovadora, contestou o que era apresentado como realidade absoluta sobre a nossa formação cultural e das relações raciais. Ela e outros intelectuais negros da mesma geração estavam comprometidos em retirar os sujeitos negros das margens para centro da nação como sujeito do conhecimento e protagonista em sua própria história e cultura. Lélia discutiu e analisou o racismo (introduzindo conceitos psicanalíticos em algumas reflexões), as relações de raça, classe e gênero e a formação cultural brasileira. Estabeleceu conceitos como o “pretoguês” (na nossa fala profundamente africanizada), a Amefricanidade (luta brasileira e latino-americana) e a perspectiva transnacional por um feminismo Afro-latino-americano. Também analisou a formação do capitalismo brasileiro na perspectiva das relações raciais. Lélia ainda participou da fundação do Movimento Negro Unificado (MNU), fundou com outras mulheres negras o Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras, integrou a primeira composição do Conselho Nacional de Direitos da Mulher (CNDM) e ministrou o primeiro curso institucional de cultura negra do país, na Escola de Artes Visuais do Parque Laje.

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“Eu gostaria de colocar uma coisa: minoria a gente não é, tá? A cultura brasileira é uma cultura negra por excelência”, dizia Lélia, que incomodava muita gente com seu talento, pensamento crítico e sua busca incansável pela verdade. Correu o mundo fazendo conexões políticas nas distintas vivências da diáspora africana e “botou a cara pra bater”, proporcionando visibilidade positiva para muitas mulheres negras brasileiras. Figura potente nos debates intelectuais e políticos dentro e fora da universidade, Lélia teve uma forte relação com o Carnaval e o feminismo negro como opção política. Dona de uma linguagem informal, ácida e irreverente em sua produção, assumiu sua fala em incontáveis artigos para revistas acadêmicas, coletâneas e jornais.

Chegou até aqui e está assustado por ter ouvido falar pouco, ou quase nada, dessa distinta senhora? Lélia Gonzalez é referência a ser apropriada pela academia brasileira.

Em 2020, ela completaria 85 anos. Faleceu cedo, em 1994, aos 59 anos em decorrência de um infarto no miocárdio. O que será que Lélia pensaria se acompanhasse os últimos acontecimentos nacionais: a extrema-direita fascista assumindo a presidência do país, pandemia do Covid-19 escancarando a desigualdade econômica e social no mundo e o projeto de genocídio da população negra em curso num Brasil que ainda minimiza a pauta racial e quem mantém os negros afastados das posições de poder? Lélia faz falta.

“Eu gostaria de colocar uma coisa: minoria a gente não é, tá? A cultura brasileira é uma cultura negra por excelência”

Lélia Gonzalez

Para enriquecer a apresentação da intelectual para o grande público, conversamos com a historiadora Raquel Barreto, mestre em História Social da Cultura e que escreveu sua dissertação apresentando as trajetórias e produções de Angela Davis e Lélia Gonzalez, comparando suas teorias sobre as relações entre raça, classe e gênero. Atualmente, no doutorado na UFF, desenvolve uma pesquisa a respeito do Partido dos Panteras Negras e as relações entre visualidade, política e poder. Em 2019, Raquel escreveu o prefácio para edição brasileira do livro Angela Davis, uma autobiografia e participou da conferência “A liberdade é uma luta constante” ao lado da mesma, no Auditório do Ibirapuera.

Como nas águas de um rio misterioso, sagrado e protegido por Oxum, a mesma Orixá feminina que abençoou os passos e concedeu a imensurável generosidade para sua filha Lélia de nos presentear com sua obra atemporal, seguimos bebendo na fonte de nossos ancestrais, guiadas por muita solidariedade, organização e confiança na nossa militância. Descolonizar é uma necessidade.

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Abaixo, a entrevista com Raquel Barreto:

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(Intervenção sobre foto de arquivo/Divulgação)

Lélia Gonzalez presente, a luta continua

Lélia deixou um legado muito atual sobre a sociedade brasileira. Seu pensamento crítico e a inquietude política, que chamou atenção inclusive do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) no período da ditadura militar, nos oferece novos meios para se pensar um Brasil que ainda, apesar das estatísticas do IBGE e da abundante contribuição cultural, social e econômica por parte da população negra e indígena, é lido por muitos como um país branco. Qual a importância do trabalho da Lélia e como ele pode nos auxiliar a enxergar não apenas o nosso território, mas o mundo através da sua influência intelectual?
É bom a gente falar da trajetória de Lélia entendendo ela como uma intelectual de práxis, alguém que estava comprometida com uma perspectiva de luta, de teorizar e ao mesmo tempo interferir nessa mesma realidade social para transformá-la. Esse é um ponto muito importante e que a singulariza. Na época da ditadura militar (eu mostrei isso pela primeira vez na minha pesquisa de mestrado em 2005, eu sou a primeira pesquisadora que encontra e trabalha com essas fontes), o material do DOPS não era conhecido sobre Lélia. Essas referências aparecem ainda no tempo em que ela era professora de filosofia. Filosofia, que é um dos campos de saber bastante eurocentrados e masculinos no Brasil, inclusive contam com poucas presenças até de mulheres brancas. Esse é um diferencial importante: ela pensa uma realidade que ultrapassa as fronteiras do Brasil porque ela pensa em termos de uma realidade compartilhada, uma realidade forjada historicamente entre várias sociedades do chamado continente americano. Ela propõe um olhar transnacional, ou seja, que cruza as fronteiras dos Estados.

Ela consegue mostrar que a base da nossa formação cultural é negra e indígena, mas está principalmente preocupada em determinar essa presença africana, afrodescendente, para ser mais precisa. É bom a gente lembrar que, na época da produção do trabalho dela, nas décadas de 1970 e 1980, o mito da democracia racial no Brasil era muito forte, muito contundente. Sustentava, inclusive, o ideário da própria ditadura militar. Então, é essa provocação que ela faz, uma interpretação que vai tanto no sentido contrário da interpretação dos militares, desse mundo conservador, como da própria esquerda, onde Lélia esteve inserida e que também era muito tributária nesse momento do mito da democracia racial. A obra de Lélia e de outros intelectuais negros dessa mesma geração tem um caráter combatente de mitos da harmonia e democracia racial, e consequentemente interfere numa ideia de um país sem conflitos social. O conflito racial aconteceu nos Estados Unidos, isso foi na década de 1970, as leis de segregação já haviam oficialmente sido desfeitas em 1964, 1968, mas o sistema da África do Sul, o apartheid é muito presente. Então, racismo é isso, é o que estava na África do Sul, é o que houve nos Estados Unidos, é aqui o mito da democracia racial e é isso que muito interessa Lélia, ela sempre observou na experiência compartilhada entre outros países.

Hoje, a intelectual é referência para coletivos antirracistas e organizações feministas no país, entretanto seu pensamento é pouco notado na academia nacional. Nas categorias analíticas aprofundadas por ela, destaco a “Amefricanidade” e o “Feminismo Afro-latino-americano”. Você poderia comentar sobre o que exatamente esses dois conceitos se referem?
Observando essa nossa experiência compartilhada entre outros países da chamada América Latina, a forma de racismo se constituiu da mesma forma. Ou seja, a ideia da assimilação, a ideia de negação dessas presenças, tanto afrodescendentes, africanas e indígenas e a ideia de uma imposição de uma superioridade europeia e branca. A obra dela tem muito esse caráter de pensar experiências compartilhadas nas Américas e combater os mitos de sustentação de um ideário de nação.

A Lélia ainda é uma autora muito pouco conhecida nos meios acadêmicos, que começou a ser lida mais recentemente, e eu acho isso muito sintomático. Desde que a Angela Davis esteve no Brasil pela última vez, as editoras comerciais começaram a prestar mais atenção na Lélia. O primeiro livro póstumo que reúne a produção dela, Lélia Gonzalez – Primavera Para As Rosas Negras, é um livro independente feito pelo próprio movimento negro como organização pela União dos Coletivos Pan-Africanistas (UCPA).

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“Há certo interesse das feministas brancas muito de forma acrítica e, às vezes, muito predatória; têm usado Lélia sem se questionar do seu próprio racismo, ou sem fazer a devida leitura que lhes cabem. Daqui a pouco, a gente vai ter mulheres brancas especialistas em Lélia, de forma totalmente desrespeitosa e principalmente sem o compromisso político que envolve uma autora dessa importância”

Raquel Barreiro, historiadora

E depois que a Angela Davis chama a atenção, o mundo editorial se interessa pela Lélia e ainda passa pelo alvará reconhecimento de Davis, isso é muito sintomático do nosso colonialismo. Vemos que há certo interesse das feministas brancas muito de forma acrítica e, às vezes, muito predatória; tem usado Lélia sem se questionar do seu próprio racismo, ou sem fazer a devida leitura que lhes cabem. Tenho percebido um afã de algumas feministas brancas querendo se apropriar do pensamento e daqui a pouco a gente vai ter mulheres brancas especialistas em Lélia, de forma totalmente desrespeitosa e principalmente sem o compromisso político que envolve uma autora dessa importância. Envolve se engajar politicamente no que ela está propondo ali, não só trabalhar como tema, como é uma relação extrativista que marca muito a branquitude no Brasil, mas se engajar politicamente com a luta antirracista. A percepção sobre isso é que as feministas brancas têm sido bem predatórias mesmo.

Um feminismo afro-latino-americano nesse conceito se liga à ideia de Lélia a uma experiência comum da América Latina, e amefricanidade também, são ideias de compartilhar uma experiência da negritude nas Américas que desloque do centro dos Estados Unidos. Hoje, eu tenho outra leitura sobre Lélia. Para mim, africanidade é uma categoria de análise que ela propõe para entender os processos de formação cultural, social e político nas Américas. Isso que ela está propondo é identificar com esse conceito, pensando que é uma experiência comum compartilhada entre pessoas nas Américas, tanto de pessoas negras e indígenas de que esse conceito pode dar conta disso.

Ato público na Cinelândia, Rio de Janeiro, em 1983. Lélia Gonzalez discursa pelo Movimento Negro Unificado (MNU)
Ato público na Cinelândia, Rio de Janeiro, em 1983. Lélia Gonzalez discursa pelo Movimento Negro Unificado (MNU) (Intervenção sobre foto de Januário Garcia/Arquivo)

Lélia foi uma mulher intensamente crítica: apontou o racismo dentro do movimento feminista, contestou o machismo e o sexismo no movimento negro e também cutucou a academia diversas vezes, isso se torna evidente na sua frase “O lixo vai falar e numa boa”. Adentrar os espaços sem deixar o compromisso político e ético de lado me parece que foi algo levado a sério pela intelectual. O que podemos aprender com essa prática observando nossa atual conjuntura de retrocessos, mas também de muita mobilização política?

Uma coisa que eu já defendo em publicações desde 2018: Lélia é uma intérprete do Brasil. Se há uma ideia de Brasil que é construído anteriormente e que na década de 1970 é questionada de diversas formas pelo movimento negro, que se embate e é crítico a essa percepção de nação, o trabalho de Lélia vai ser propor outra interpretação para nossa formação social e cultural. É muito importante pensar Lélia no conjunto, porque a ideia do feminismo é uma parte da produção da autora que acaba tirando o foco do conjunto, focalizando apenas numa parte da produção dela que é importante, relevante, atual, mas a autora tem que ser lida como um todo.

A Lélia foi intensamente crítica e, por conta disso, não teve a validação dos pais dela. O mesmo aconteceu com a historiadora Beatriz Nascimento. As pessoas que apresentam perspectivas disruptivas acabam ficando isoladas, né? Especialmente naquele tempo. Eu mesma não vivi com Lélia Gonzalez, só pude conhecer e escrever a primeira dissertação de mestrado, a primeira pesquisa acadêmica sobre ela no Brasil porque o movimento negro brasileiro guardou a sua memória. Não foi a academia, não foram as feministas brancas, foi o movimento negro. E o movimento negro que tem sido responsável pela guarda da memória de pessoas negras de outros tempos, é importante a gente frisar isso. A passagem dela não foi fácil, ela também esteve na esquerda e fez críticas contundentes ao Partido dos Trabalhadores (PT), apontou para a falta do compromisso do PT com a questão racial. Lélia foi uma filósofa da práxis, da intervenção e ao mesmo tempo marcada por um otimismo e pelo espírito de uma geração que considerava a transformação possível, ela acreditava na intervenção política estatal, formal, legal, que é que esse tipo de ação da coletividade pode transformar, isso é uma diferença muito importante.

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“Estamos falando sobre a herança da Lélia, a gente não está falando de protagonismos individuais, a gente não está falando de brilho, lacre, empoderamento do meu cabelo, da minha bunda, ou seja lá o que for. A gente está falando de uma expressão de coletividade e isso é uma marca. Não é a agenda neoliberal que está pautando o debate, mas o entendimento de que os movimentos e as lutas se constroem em movimentos sociais”

Raquel Barreto, historiadora

Estamos falando sobre a herança da Lélia, a gente não está falando de protagonismos individuais, a gente não está falando de brilho, lacre, empoderamento do meu cabelo, da minha bunda, ou seja lá o que for. A gente está falando de uma expressão de coletividade e isso é uma marca. Não é a agenda neoliberal que está pautando o debate, mas o entendimento de que os movimentos e as lutas se constroem em movimentos sociais. Ela foi militante de organização. Tem um depoimento da pesquisadora Elizabeth Viana que conviveu com a Lélia e também estudou Lélia muitos anos depois, e ela fala que numa entrevista perguntaram pra ela sobre a intelectual e ela falou “Lélia comia pão com mortadela com a gente”. Ou seja, a Lélia estava ali com eles, não tinha isso de que ela era especial, sabe? Hoje a gente vê a distância e enxerga que tinha algo especial ligado à produção do conhecimento, como Beatriz Nascimento, como o sociólogo Eduardo de Oliveira e Oliveira e com outras pessoas. Essa singularidade dela, intelectual e acadêmica, possibilitou que ela deixasse uma marca mais expressiva, mas é a mobilização e as lutas, eu acho que esse ponto é importante, não se dão por indivíduos, mas se dão na coletividade. E Lélia era uma mulher de partidos e ações em conjuntos.

Se assumir como sujeito negro no Brasil implica percorrer o caminho de “tornar-se negro”, como explicou a psiquiatra Neusa Santos Souza. Lélia passou por esse processo de transformar o seu embranquecimento, tanto estético quanto intelectual, na poderosa construção da mulher negra que ela foi e que iluminou, e ilumina, a caminhada de muitas de nós. Nesse encontro com sua real essência, Lélia imergiu na psicanálise e no candomblé, e isso transbordou na sua produção. Como o estudo psicanalítico auxiliou a intelectual a pensar sobre o racismo no Brasil? E seus textos, mesmo datados, nas décadas de 1970 e 1980 seguem atemporais.

“A psicanálise e o candomblé tiveram um papel importante no processo da Lélia. Isso é o que ela narra, a gente trabalha com isso a partir da narrativa da Lélia que conta essa história pra gente nos textos, em depoimentos, entrevistas, que foi a partir do suicídio de seu primeiro marido que ela vai fazer uma imersão e tentar se conhecer melhor, se descobrir e aí a função da psicanálise que poderia ser uma função de embranquecê-la, ou seja, de acomodar mais numa lógica eurocêntrica”

Raquel Barreto, historiadora

A psicanálise e o candomblé tiveram um papel importante no processo da Lélia. Isso é o que ela narra, a gente trabalha com isso a partir da narrativa da Lélia que conta essa história pra gente nos textos, em depoimentos, entrevistas, que foi a partir do suicídio de seu primeiro marido que ela vai fazer uma imersão e tentar se conhecer melhor, se descobrir e aí a função da psicanálise que poderia ser uma função de embranquecê-la, ou seja, de acomodar mais numa lógica eurocêntrica. Esse processo de embranquecimento está ligado a essa mobilidade social que ela faz e para fazer mobilidade social é importante você sair do seu grupo de origem, é importante assumir os valores do outro grupo acriticamente. Nessa passagem, quando ela tem esse baque e vai refletir, a psicanálise serve para ela voltar para as suas origens. Lélia estava muito envolvida com a recepção do psicanalista francês Jaques Lacan no Rio de Janeiro, e a escola freudiana recepcionou as ideias do Lacan de uma forma não colonizada, isso é importante dizer. Como ele não teve uma recepção colonizada, foi possível usar Lacan para pensar determinadas dimensões do inconsciente nacional. A proposição era assim: já que não dá pra colocar o país num divã, vamos pegar os elementos da cultura desse país e analisá-la. E foi isso que ela fez.

Em 2019, durante a sua primeira palestra em São Paulo, Angela Davis demonstrou estar surpresa diante todo approach dos brasileiros acerca da sua produção sobre o pensamento feminista negro. Claro, ela é Angela Davis, um nome reconhecido internacionalmente, mas durante sua fala ela expressou não compreender o fato de que se nós temos o trabalho da Lélia Gonzalez (uma intelectual negra brasileira pensando negritude e como a nossa sociedade se consolidou), por que buscamos referência primeiramente no que está fora? Temos no solo Brasil alguém que elaborou um pensamento extremamente significativo sobre mulheres, raça e classe. Como as ideias de Davis e Gonzalez se aproximam? Quais os pontos similares na produção dessas duas intelectuais tão importantes nos estudos contemporâneos das relações raciais?
A relação entre Angela, Davis e Lélia é muito única. Na minha pesquisa de mestrado, que é a primeira no país sobre a Angela Davis e sobre a Lélia Gonzalez, eu estudei as duas autoras em conjunto. Na época, nenhuma das duas autoras tinha sido estudada, a Luiza Bairros (intelectual, militante e ex-ministra da igualdade racial) já tinha um artigo que é a base e muito do que a gente tem feito está baseado no primoroso texto dela. Sobre Angela Davis não tinha nada, nem tradução dos livros na época. Depois de muito tempo a obra de Angela começou a ser traduzida e a circular mais do que a da brasileira, isso diz respeito ao colonialismo interno que a gente vive. A comunidade negra também reproduz esse colonialismo e acaba referenciando mais as pessoas de fora do que do Brasil.

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E a gente também sofre no Brasil de um processo de apagamento de memória, então toda geração negra que chega acha que está descobrindo a pólvora quando muito do que a gente fala hoje já tinha sido feito por gerações anteriores, mas a gente tem esse problema de não nos atualizarmos da nossa própria tradição de pensamento e herança cultural. Os brancos, intelectuais, pensadores, eles recebem uma tradição e eles decidem o que eles vão fazer com ela. Ou eles vão avançar ou eles vão negar, mas até para negar, quebrar e romper, eles conhecem. Nós no Brasil, pessoas negras, do ponto de vista intelectual, acadêmico, e eu também estou pensando em artes visuais (que é um campo meu de atuação de pesquisa), o que foi acumulado no nosso pensamento por conta da estrutura racista, que interfere na produção do conhecimento, no epistemicídio (conceito muito popularizado a partir do trabalho da intelectual Sueli Carneiro), ele dá conta dessa morte do sujeito que produz conhecimento. Nossas epistemologias são apagadas, como diria Lélia, é recalcada. Nós poderíamos estar avançando, inclusive dizendo “Eu conheço essa tradição, mas o meu caminho hoje é outro”.

“Estou falando de Lélia no campo de um pensamento sobre raça, gênero e classe no Brasil, a gente pode pensar em Beatriz Nascimento sobre história, pode pensar em Abdias do Nascimento sobre artes visuais. Olha, nos anos 1960, o Abdias já estava pensando nas artes visuais e a gente não conhece esse pensamento; o Rubem Valentim por outro caminho e a gente tem pouco contato com toda uma tradição que nos antecedeu”

Raquel Barreto, historiadora

Estou falando de Lélia no campo de um pensamento sobre raça, gênero e classe no Brasil, a gente pode pensar em Beatriz Nascimento sobre história, pode pensar em Abdias do Nascimento sobre artes visuais. Olha, nos anos 1960, o Abdias já estava pensando nas artes visuais e a gente não conhece esse pensamento; o Rubem Valentim por outro caminho e a gente tem pouco contato com toda uma tradição que nos antecedeu. As nossas gerações acabam não tendo esses gaps de formação, expressa a marca do epistemicídio e mostra a marca de um colonialismo muito interno.

As histórias dos afro-americanos em alguns momentos convergem com as nossas, têm pontos de convergência, mas eles são americanos, afro-americanos, afro-estadunidense, nós somos pessoas negras no Brasil. E essa dimensão do Estado Nacional não pode ser esquecida, há partes da nossa experiência que convergem, mas outras partes são diferentes. É bom lembrar o que é estar num país pobre e o que é estar num país rico mesmo sendo racializado. Sofrem racismo, apesar disso, eles têm noção da tradição deles, desde o século 19 os norte-americanos têm acesso a isso. Nós não, ainda estamos construindo isso agora. Podemos ter a certeza que para as próximas gerações, elas vão saber que elas herdam uma tradição de pensamento intelectual formulado, se a gente quiser datar do século 19. Estou falando bem estritamente, falando de pensamento de autoria e proposição intelectual.

Uma figura como o abolicionista Luís Gama, a gente o conhece pouco. Os pan-africanistas reivindicam que ele era um pan-africanista por essência, um poeta, uma pessoa genial e a dificuldade que é para que as gerações negras possam conhecer ele, a gente tem essa noção das nossas continuidades. Acho que são aspectos muito importantes para se pensar.

“A Lélia também discorreu sobre a formação do capitalismo brasileiro, especialmente no texto da década de 1970, pensando no capitalismo racial, não tinha esse nome, o debate naquela época era diferente, mas isso está muito vivo como ela está articulando a dimensão da exploração de classe, com uma dimensão também de como o capitalismo, como o racismo interfere nessa relação capital e trabalho”

Raquel Barreto, historiadora

As aproximações entre Lélia e Angela dizem respeito a ideia das transformações, de uma teoria e ação. As duas se complementam, uma não faz sentido sem a outra, elas são muito pioneiras num debate que hoje se chama interseccionalidade, mas que não tinha nome na época. Eram articulações de opressões de raça, classe, gênero, é isso que elas estão articulando nas obras delas e é pouco mencionado. A Lélia também discorreu sobre a formação do capitalismo brasileiro, especialmente no texto da década de 1970, pensando no capitalismo racial, não tinha esse nome, o debate naquela época era diferente, mas isso está muito vivo como ela está articulando a dimensão da exploração de classe, com uma dimensão também de como o capitalismo, como o racismo interfere nessa relação capital e trabalho. Esse é um ponto que converge delas, e pensar e voltar para o passado histórico das duas sociedades e recuperar a inserção e a presença das mulheres negras naquele contexto, que na produção da Angela e Lélia era uma novidade muito grande o que elas estavam propondo. São caminhos bem diferentes, referências teóricas também, objetivos diferentes, mas elas olham para aquele tempo.

Gonzalez em Dacar (Senegal), em 1979
Gonzalez em Dacar (Senegal), em 1979 (Intervenção sobre foto de arquivo/Divulgação)

Graças ao Movimento Negro, temos preservada a memória e o trabalho de muitos dos nossos intelectuais, porém existe um projeto colonial que visa o apagamento do protagonismo de pessoas negras e indígenas: o epistemicídio, que almeja a invisibilidade das nossas existências. Mesmo com um pensamento negro brasileiro consolidado desde o século 19, percebemos uma resistência das editoras comerciais em publicar a autoria negra. Muitos livros só conseguem tomar corpo, pois muita “solidariedade e organização”, como dizia Lélia, acontece dentro dos coletivos que tornam possíveis a circulação desses materiais de forma totalmente independente. No momento atual, muitas empresas, marcas e personalidades vislumbram no “selo antirracista” não apenas uma atitude “politicamente correta” de reconhecimento e reparação histórica, mas também uma onda lucrativa de engajamento e popularidade. Quais pensadores negros e livros você recomenda para quem quer aprender pelos saberes não-hegemônicos?
A discussão que eu quero é outra: quantas dessas empresas estão contratando pessoas negras? Não só para escrever o livro não, é contratar para editor, para posições de comando e destaque, revisão de tradução que é algo muito delicado. As editoras brancas precisam contratar tradutores e tradutoras negras porque a gente vê que passa muita coisa na tradução por uma falta de um letramento racial. E só pessoas negras podem ter letramento racial? Não, mas já que eles entenderam que o mercado editorial tem um público, é importante que pessoas negras sejam contratadas. Acho que isso é um ponto para todas as empresas que se dizem antirracistas. E a gente vai ver que no caso das editoras é muito brutal como esse é um espaço muito branco.

Eu recomendaria para quem quer aprender mais da nossa própria tradição negra brasileira, ler a historiadora Beatriz Nascimento, o sociólogo Eduardo de Oliveira e Oliveira, temos muitas autoras. De literatura, a Conceição Evaristo que já é a mais conhecida, a Ruth Guimarães, uma autora interessante da década de 1950 que publicou muita coisa e que teve agora os livros relançados. Também o Guerreiro Ramos, o Solano Trindade poeta e ativista envolvido com a com a luta em São Paulo.

“As pessoas que estão realmente comprometidas com a luta, do passado e do presente, elas não possuem tempo pra escrever livro. Nossa formação negra brasileira se dá pela oralidade. Então, a gente também tem uma dificuldade de que se faça registro, isso também é um apelo para as novas gerações, de como a gente vai encontrar metodologias que possam registrar o pensamento de mulheres negras”

Raquel Barreto, historiadora

As pessoas que estão realmente comprometidas com a luta, do passado e do presente, elas não possuem tempo pra escrever livro. Uma pessoa que foi muito importante na minha formação política, uma ativista e referência, é a Lúcia Xavier daqui do Rio de Janeiro de uma ONG chamada “Criola”, e a Lúcia é uma pessoa, como outras mulheres negras, que me formou pela palavra. A Neusa das Dores, da “Casa das Pretas”, são mulheres negras que têm uma capacidade muito singular de análises e interpretação da conjuntura, mas a nossa formação negra brasileira se dá pela oralidade. Então, a gente também tem uma dificuldade de que se faça registro, isso também é um apelo para as novas gerações, de como a gente vai encontrar metodologias que possam registrar o pensamento de mulheres negras. As que já se foram fica mais difícil, mas têm muitas mulheres negras importantes que podem ser minha mãe, a sua, a líder comunitária, a senhora da associação de moradores, a dona do bar, as mulheres do samba, uma série de mulheres negras que produzem um conhecimento e que a gente não tem forma, não tem registro disso, isso é uma parte cruel na história. E por vezes pessoas que tem um pensamento muito raso, vendável, são as que escrevem e publicam livros porque não tem compromisso político, falam coisas que são palatáveis também, porque não trazem nenhum desafio, nenhum problema filosófico conceitual, é tudo muito plano, às vezes funciona até um pouco como manual, autoajuda. Então, isso é um ponto importante, que proposições que às vezes nos fazem refletir ou desorganizam nossas referências, fiquem mais eclipsadas.

Raquel Barreto durante a conferência “A liberdade é uma luta constante” com Angela Davis no Auditório do Ibirapuera em 2019
Raquel Barreto durante a conferência “A liberdade é uma luta constante” com Angela Davis no Auditório do Ibirapuera em 2019 (Arquivo/Divulgação)
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Para ler Lélia Gonzalez

Reprodução
O lugar de negro,
de 1982
(coautoria com o sociólogo argentino Carlos Hasenbalg)

Lélia publica seu primeiro livro, “Lugar de Negro”, no início da década de 1980, em parceria com o sociólogo argentino Carlos Hasenbalg. Na obra, o capítulo “O movimento negro na última década”, de sua autoria, traça um panorama histórico do modelo econômico a partir de 1964, quando os militares assumiram o poder e instauraram uma nova “ordem” e como a população negra trabalhadora se encaixou nesse cenário.

◊ ◊ ◊ ◊ ◊ ◊ ◊ ◊ 

Reprodução
Festas populares,
de 1987

A obra apresenta registros fotográficos de festas populares do Brasil de norte a sul. Com textos informativos de Lélia que, para além das festividades, mostra os laços indissociáveis entre Brasil e África, a integração entre o profano e o sagrado e a reinvenção das tradições religiosas na formação imaginária e cultural do Brasil.

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Reprodução
Lélia Gonzalez
(biografia póstuma escrita por Alex Ratts e Flavia Rios), de 2010

Primeira biografia póstuma sobre Lélia (escrita pela socióloga Flávia Rios e o antropólogo Alex Ratts), o livro acompanha sua trajetória da infância humilde até a consagração no meio político e cultural, trazendo ainda um levantamento de sua obra.

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Reprodução
Primavera para as Rosas Negras
(compilação de artigos, textos e depoimentos de Lélia e traz, ainda, entrevistas com pessoas que conviveram com ela. A organização é da União dos Coletivos Pan-Africanistas), de 2018

Organizado pela União dos Coletivos Pan-Africanistas, o livro é uma compilação de artigos, textos e depoimentos de Lélia. Traz ainda entrevistas com pessoas que conviveram com ela.

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Reprodução
Por um feminismo afro-latino-americano
(reúne textos, ensaios, entrevistas, traduções inéditas e escritos dispersos), de 2020

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Com organização de Flávia Rios e Márcia Lima, o livro reúne em um só volume um panorama amplo da obra da pensadora. São textos produzidos durante 1979 a 1994, e que marcam os anseios democráticos do Brasil e de outros países da América Latina e do Caribe. Além dos ensaios já consagrados, fazem parte desse legado os artigos de Lélia que saíram na imprensa, entrevistas antológicas, traduções inéditas e escritos dispersos.

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