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Como transbordar-se em isolamento?

Roteirista e cantora queerneja, Alice Marcone fala sobre marcadores sociais, privilégios e sentimentos durante o isolamento social

por Alice Marcone Atualizado em 14 set 2020, 11h02 - Publicado em 11 set 2020 01h34
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(Clube Lambada/Ilustração)

ivemos um momento ímpar da nossa história. Se o capitalismo globalizado transformou o indivíduo no bem mais precioso da humanidade, a crise generalizada que vivemos nos escancara os limites desse bem. Estamos isolados e desesperados pelo outro. Não aguentamos mais termos apenas a nós mesmos, mas talvez a coletividade só seja possível se abstrairmos do indivíduo a individualidade. 

Veja bem… algumas pessoas, tão asseguradas de seus direitos individuais, lotam os bares para encontrar seus iguais e restaurar sua normalidade. Estar entre os amigos, gozar do encontro e da coletividade, nesse caso, é um direito apenas de quem acaba assim assassinando outras coletividades que não terão acesso ao mesmo plano de saúde caríssimo.

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(De arte natandi (1587) / Everard Digby/Reprodução)

Essa classe média que pode comprar a própria cidadania rompe a quarentena, mas não o isolamento. Essas pessoas saíram de suas casas, mas continuam isoladas em suas bolhas, em seus narcisismos das pequenas diferenças e em seus intransponíveis marcadores sociais. Por mais que queiram ser apenas humanas, demasiadamente humanas, são também brancas, demasiadamente brancas. Ou ricas, pretensamente ricas. Essas pessoas não entendem a própria individualidade – pois seu ponto de vista parte sempre de uma fantasia impossível de neutralidade. 

O coletivo, o universal e o humano, para essas pessoas, são exatamente iguais a elas.  “All lives matter“, elas dizem, justamente porque não conseguem perceber o que é que têm de diferente: o que é que, em sua história pessoal – ou na cor da sua pele –, constitui a diferença social que impede a universalidade que eles almejam e propõem. Uma universalidade que, ao mesmo tempo que tenta invisibilizar a diferença, a cria. Afinal, são a branquitude, a cisgeneridade e a heterossexualidade que dizem que a diversidade está no outro: nos não-brancos, não-cis e não-héteros. E não entendem que quem produz essas diferenças, e constitui-se nelas, são elas mesmas. 

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(De arte natandi (1587) / Everard Digby/Reprodução)

O reconhecimento dessa “diferença” é essencial para a tão demandada e necessária reparação histórica. Dividir plataformas e poderes com quem nunca os teve é um passo importante de quem, pela primeira vez, também se reconhece “diferente”. Entender que sua branquitude, sua cisgeneridade e sua heterossexualidade não te tornam “neutro”, mas sim igualmente marcado, é tão importante quanto o levante de quem nunca teve outra opção senão se ver desde sempre marcado e apontado como diferente: pela polícia, pela medicina eurocêntrica ou por um dedo que ordena a IPA gourmet nos barzinhos com os metros quadrados mais caros do Brasil. E aí, para além de dar espaço à diferença do outro, quem sabe a branquitude, a cisgeneridade e a heterossexualidade possam multiplicar as representações de si mesmas. Precisamos de mais homens tão orgulhosos e certos de que são hétero que até se permitem dar o ânus para sua mulher se essa for a vontade do casal. 


O hétero também pode participar da luta anti-LGBTQIAfobia. O branco também pode ter lugar na luta anti-racista. O homem também pode ser feministo. Os espaços de debate podem ser diversos. As lutas precisam de aliados. Não universais, mas coletivos

Não nos esqueçamos, afinal, que o Brasil não é só o país que mais consome pornografia envolvendo mulheres trans e travestis, como é também o país onde ocorrem o maior número de assassinatos de pessoas trans. O homem heterossexual que deseja e, por isso, mata uma mulher trans é um homem que não entende a própria heterossexualidade. 

Por isso, o hétero também pode participar da luta anti-LGBTQIAfobia. O branco também pode ter lugar na luta anti-racista. O homem também pode ser feministo. Os espaços de debate podem ser diversos. As lutas precisam de aliados. Não universais, mas coletivos. Indivíduos que as componham sem supor uma igualdade, mas sim, reconhecendo as diferenças. Indivíduos que se perguntem e estudem como podem fazer parte de algo maior do que eles – entendendo, assim, quais são seus limites.

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(De arte natandi (1587) / Everard Digby/Reprodução)

Assim, quem sabe eu, mulher travesti negra (e heterossexual, vejam só), não precise sempre me responsabilizar por representar as mesmas “diferenças”. Afinal, eu tenho muitas outras: sou roteirista, sertaneja, atriz, modelo, psicanalista lacaniana, namorada, filha, amiga, mãe do Jimi, da Rita e do Alfredo, paulista, brasileira, nerd, Little Monster, caipira perdida na cidade, estudante ocasional de vogue, amante porém não tão praticante da culinária, agnóstica, ex-nadadora, mergulhadora apaixonada, mochileira frustrada, capricorniana com ascendente e lua em peixes, millennial quase centennial, ex-escritora de fanfics do Orkut, agora escrevendo também para a Elástica etc… 

Que a reticência seja um direito de toda individualidade. Que, conhecendo nossas bordas e os lugares de onde falamos, possamos nos transbordar. 

Passamos por uma pandemia global e nunca foi tão explícita a urgência por uma coletividade que, finalmente, rime com toda a humanidade e não mais com uma unívoca universalidade. 

Juntes, que possamos transbordar esse isolamento social.

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(Breno da Matta/Fotografia)
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Todas as ilustrações que você viu neste texto são do livro “De Arte Natandi” (The Art of Swimming), de Everard Digby’s (1587)

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