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Um homem na sala de espera

O preconceito que marca a experiência de homens trans em consultas no ginecologista faz com que muitos sejam privados de acompanhamento médico adequado

por Heloisa Aun Atualizado em 30 set 2020, 11h02 - Publicado em 30 set 2020 00h02
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(Clube Lambada/Ilustração)

simples ato de ligar e marcar uma consulta no ginecologista pode representar o início de uma série de violências a homens trans. “Antes de registrar meu nome social, procurei um consultório e a atendente perguntou: ‘qual o nome completo da paciente?’. Respondi o de registro e tive de ouvir: ‘Tem certeza que é para você?’”, relata Eduardo Mark, de 28 anos, morador de Cotia, na região metropolitana de São Paulo. O preconceito em todo esse processo para garantir o acompanhamento adequado induz parte desse grupo a evitar a procurar ajuda, seja via sistema privado ou público. E este é só um indício da transfobia, uma vez que a grande maioria dos médicos não se diz preparada para atender um rapaz que realizou ou passa pela transição de gênero.

“Sim, eu sou um homem trans”, respondeu Eduardo diante do questionamento sobre a procura por ginecologista. Mesmo assim, novos impeditivos já foram colocados em diversas ocasiões. “Uma recepcionista disse que teria que checar com a médica se ‘ela poderia cuidar do meu caso’”, lembra o analista de atendimento ao cliente. Do outro lado, também há quem busque tratar a todos, todas e todes com respeito. “Liguei em mais um consultório e a pessoa lidou muito bem, assim como a médica”, afirma. Segundo ele, essa mesma ginecologista declarou: “a gente não é médico de mulher, mas sim, de genital e vagina. Se você tem esse órgão, eu tenho pleno conhecimento para te auxiliar”, conta.

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(Pétala Lopes/Fotografia)

Antes de iniciar a transição de gênero, Mark tinha vergonha de frequentar ginecologistas por inúmeras questões e evitava ao máximo passar por essa experiência. Aos 16 anos, engravidou de seu filho, Kelvin, e só voltou a frequentar as consultas algum tempo depois. A pedido de sua mãe, o rapaz foi a uma médica e descobriu que tinha ovário policístico. A especialista o induziu a tomar hormônio feminino, o que era horrível e o fazia se sentir inchado – episódio que o distanciou por seis anos de qualquer atendimento ginecológico. Essa necessidade só voltou a se manifestar no momento em que ele já se identificava como homem.

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Eduardo começou a entender a importância dos atendimentos quando procurou o processo de hormonioterapia pelo SUS (Sistema Único de Saúde), que o obrigava a ter acompanhamento ginecológico. Ele considera que teve sorte nessa época porque a doutora do CTA (Centro de Testagem e Aconselhamento) de Guarulhos o atendeu de forma respeitosa. “Ela me deixou super à vontade até durante o papanicolau”, ressalta. No mesmo local, teve acesso às demais especialidades necessárias, como endocrinologista, psiquiatra e psicóloga, porém, esta última foi transfóbica ao comentar sobre a paternidade trans.

A reclamação formal contra a profissional de nada adiantou, mas, pouco tempo depois, Eduardo entrou como estagiário em uma empresa que tinha plano de saúde e não precisou mais utilizar o SUS. Pela Unimed, fez a mamoplastia masculinizadora, em 2019, com um médico indicado por um colega trans. “Era péssimo esse período, eu tinha muita disforia e não conseguia nem sair de casa alguns dias. Estava tão mal a ponto de achar que as pessoas me tratariam por outro gênero por causa do volume do meu peito. Eu sempre senti esse incômodo, desde a infância, e não sabia o significado”, recorda.

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(Pétala Lopes/Fotografia)

Em agosto deste ano, o analista de atendimento ao cliente decidiu partir em busca de outra necessidade de seu corpo: a histerectomia, que é a cirurgia de retirada do útero e dos ovários. Parte dos homens trans opta por mais um procedimento, além da mamoplastia masculinizadora, pois o uso prolongado de hormônio masculino pode fazer os ovários atrofiarem, o que é prejudicial à saúde. A cirurgia mostra-se difícil de ser feita, especialmente no SUS, e é importante ressaltar que, após a realização da mesma, a pessoa continua com o tratamento, mas em uma janela maior de tempo.

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Elástica acompanhou e registrou algumas cenas da consulta de Eduardo, feita pela ginecologista Bruna B. Cavalcante, especialista em ginecologista obstetrícia e reprodução humana. Após tirar dúvidas sobre a histerectomia, o paulista passou pelo papanicolau e exames de toque para detectar possíveis nódulos nas mamas. Ele ainda saiu com um pedido para exames de rotina, como ultrassom.

“Nessa consulta descobri que existe possibilidade de um homem trans ter câncer de mama. Fiquei surpreso porque achava que estava isento da doença. Isso não foi avisado no SUS ao solicitar a mamoplastia masculinizadora”

Eduardo Mark

“Nessa consulta descobri que existe possibilidade de um homem trans ter câncer de mama. Fiquei surpreso porque achava que estava isento da doença. Isso não foi avisado no SUS ao solicitar a mamoplastia masculinizadora”, ressalta. A ginecologista explica que o câncer de mama pode ocorrer, pois existe a possibilidade de que a equipe médica não tenha retirado todo o tecido mamário, por isso, é recomendável realizar exames frequentes. Embora não seja especializada na cirurgia de histerectomia, a médica foi extremamente acolhedora e se propôs a indicar profissionais da área que fazem o procedimento.

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(Pétala Lopes/Fotografia)

Constrangimento entre quatro paredes

As experiências de Eduardo Mark, em grande parte das vezes positivas, não são a realidade para muitos homens trans. O trauma que os expulsa de consultas ginecológicas também está ligado ao ambiente composto, em sua maioria, pelo público feminino. “Evito ao máximo as idas ao ginecologista, pois a própria sala de espera cheia de mulheres é um constrangimento para mim”, reitera Artur*, que planeja realizar o quanto antes a histerectomia total e o fechamento do canal vaginal para “nunca mais ter que voltar a esse tipo de médico”.

O designer e produtor musical Lian Hernandez, de São Paulo, passou por algo similar. “O que esse menino está fazendo aqui?”, revelavam os olhares na sala de espera da clínica. Como na época ainda não tinha retificado seu nome, foi chamado pelo de registro antes de entrar na sala. Felizmente, a ginecologista que o atendeu era uma senhora muito respeitosa, que o tratou no masculino e lidou de forma correta. “Eu esperava o pior, já que muitos médicos se recusaram a me atender por não se dizerem aptos.”

 “Evito ao máximo as idas ao ginecologista, pois a própria sala de espera cheia de mulheres é um constrangimento para mim”

Artur*
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Carlos*, no entanto, vivenciou uma situação constrangedora e violenta. Quando chegou a uma clínica em Vitória, no Espírito Santo, os atendentes da recepção começaram a trocar olhares, aparentemente sem entender o porquê de um homem marcar um ginecologista. Em seguida, o questionaram se era aquele médico que ele procurava e chamaram outro atendente, que pegou seu documento e pediu para esperar. Passaram-se 45 minutos e o rapaz questionou se havia muita fila de espera.

“Quando perguntei sobre a demora, informaram que tinha ocorrido um problema e inseriram a especialidade incorreta. Então, fizeram um encaixe para neurologista”, relata Carlos. Seu sangue subiu naquele momento, mas, apesar disso, respondeu que é um homem trans e que procurava um ginecologista. Nisso, marcaram um horário qualquer, sem ao menos perguntar qual seria sua preferência e a especialidade correta. “Liguei na ouvidoria para reclamar e sugerir que façam algum treinamento sobre transexualidade e gênero para os atendentes. Ainda assim, o rapaz me tratou no feminino durante a ligação”, finaliza.

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(Pétala Lopes/Fotografia)

“Liguei na ouvidoria para reclamar e sugerir que façam algum treinamento sobre transexualidade e gênero para os atendentes. Ainda assim, o rapaz me tratou no feminino durante a ligação”

Carlos*

Além do abuso psicológico, há pessoas que passaram por violência física. “Quando eu falei que sou um homem trans e que queria iniciar a hormonização, o médico começou a ser mais agressivo nos exames de toque, como se por ser homem eu ‘aguentasse’ mais. Ao falar que estava me machucando, ele ignorou minha dor”, recorda Bruno*. O trauma privou o jovem por anos de voltar ao ginecologista. “Não queria ser vítima de nada parecido com isso de novo”, pontua.

Ao mesmo tempo em que há experiências de violência e desrespeito, também existem médicos que executam o procedimento de forma adequada. Athos Souza, nascido em Porto Alegre, conta que nunca teve problemas nas consultas, inclusive nos exames mais invasivos. Todo seu acompanhamento é feito pelo SUS. “Como atuo na área da saúde e na militância, já estou munido para qualquer situação desconfortável. Sou uma pessoa trans em um país totalmente retrógrado. Por isso, tenho na ponta da língua todos meus direitos”, completa.

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“Como atuo na área da saúde e na militância, já estou munido para qualquer situação desconfortável. Sou uma pessoa trans em um país totalmente retrógrado. Por isso, tenho na ponta da língua todos meus direitos”

Athos Souza
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(Pétala Lopes/Fotografia)

Hormonização e cirurgias: dúvidas mais comuns

A ginecologista Bruna Cavalcante afirma que seu primeiro contato com a transexualidade foi breve e ocorreu apenas durante a residência, mas, na especialização em reprodução humana, passou a pesquisar mais a fundo sobre fertilidade em pacientes trans e todos os demais fatores envolvidos. Após esse processo, acompanhou um caso de pré-transição de um paciente trans. “Com a transição, essa pessoa mudou a autoestima e a postura. A alegria de contar histórias e a motivação de viver a transformaram completamente”, lembra.

De acordo com ela, a principal dúvida que surge por parte desse grupo é em relação ao início da hormonização. “Uma questão comum é sobre os sangramentos, se vão continuar acontecendo, e sobre as cirurgias, tanto a de mamoplastia masculinizadora quanto a histerectomia”, explica. Por não ser especialista, ela busca sempre indicações de profissionais que realizam os procedimentos com pessoas trans.

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(Pétala Lopes/Fotografia)

A partir de sua área de atuação, Bruna conduz as consultas com cuidado, tratando de temas como relação sexual, doenças sexualmente transmissíveis, fertilidade e a possível intenção de se reproduzir no futuro. “Sempre oriento sobre os riscos de poder engravidar, mesmo com a hormonização, e sobre a necessidade de fazer o exame de papanicolau, usado para detectar câncer de colo do útero”, reitera.

O objetivo de tratar a questão é mostrar de antemão como a hormonização pode afetar a fertilidade no futuro. Para ela, o ideal seria ter um aconselhamento para a pessoa refletir se tem desejo ou não de engravidar, mas isso nunca é pontuado a mulheres e homens trans. “Se houver esse desejo, precisamos considerar o congelamento de espermatozoides, no caso de mulheres trans, e de óvulos, no caso de homens trans”, continua.

A hormonização também pode influenciar na ocorrência de corrimentos, como afirma a ginecologista. “O nosso microbioma vaginal pode ser modificado por alterações hormonais. Além de tudo, há a questão dos sangramentos vaginais e os riscos de câncer de endométrio, diagnosticado em função dos sintomas e do exame ginecológico”, alerta.

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(Pétala Lopes/Fotografia)

A médica aconselha uma atenção redobrada enquanto o paciente estiver usando hormônios de forma mais frequente. As alterações começam de forma sutil e, muitas vezes, o sangramento indica que já existe algo em estágio mais avançado. Outros sintomas que revelam que algo não está bem são: dores pélvicas recorrentes e dores abdominais, mais próximas ao fígado, uma vez que o hormônio é metabolizado por esse órgão.

Uma dúvida comum é em relação a possíveis contra indicações da pílula do dia seguinte a homens trans. Segundo ressalta a ginecologista, a princípio não há ressalvas de tomá-la, pois ela é exclusivamente composta por progesterona. “Tem que tomar cuidado caso você seja um homem trans que não quer engravidar: a testosterona por si só não bloqueia a ovulação e a possibilidade de gestação”, conclui.

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(Pétala Lopes/Fotografia)

Sexualidade (r)existe

O assunto sexualidade, muitas vezes, fica em segundo plano nas consultas, pois existe um contexto com poucos médicos preparados para atender homens trans. Mas, na última experiência de Eduardo, Bruna falou abertamente sobre o tema, de acordo com ele. “Eu estou numa relação transcentrada, com uma travesti não binária, e a médica se mostrou interessada em perguntar sobre a pessoa também, não só sobre mim. Conversamos sobre métodos contraceptivos, como o preservativo, que é o que uso”, indaga.

Eduardo conta que descobriu mais a fundo sobre sua sexualidade depois que iniciou a transição. Antes disso, tinha muita vergonha de seu corpo. “Me sentia incomodado de ser lido como uma mulher, então não me soltava a ponto de ter uma boa vida sexual. Me limitava e limitava meus prazeres”, acrescenta.

Ao começar a ser tratado com o gênero correto, no masculino, sua autoestima transformou-se, o que ficou ainda melhor com a realização da mamoplastia masculinizadora. Apesar de persistir no sonho da cirurgia de redesignação sexual, isso não o afeta mais. “Para ser homem, não tenho que ter um pênis”, indaga. Com seu relacionamento atual, ele descobriu outros prazeres do sexo.

“Para ser homem, não tenho que ter um pênis”

Eduardo Mark
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Essa é a primeira vez que Eduardo tem uma relação com uma pessoa trans feminina. Antes, sempre se relacionou com mulheres cisgênero, inclusive uma delas acompanhou sua transição de gênero quando moravam juntos. Para seu filho, tudo isso também é novo, no entanto, ele sempre o aceitou e o apoiou, mesmo sendo uma criança.

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(Pétala Lopes/Fotografia)

Para o analista, o atendimento médico recorrente em especialistas é primordial a todas as pessoas trans. “É importante a gente entender que isso é para a nossa saúde e que, por mais que tenhamos tido experiências ruins no passado, há muitos profissionais hoje que são ótimos e estão se empenhando para tratar cada caso com cuidado. Precisamos fazer periodicamente a consulta porque se tiver um nódulo identificado no começo é preciso cuidar o quanto antes. E, com certeza, é essencial para a vida sexual como um todo”, alerta.

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*Os nomes dos entrevistados marcados com asterisco foram alterados para preservar suas identidades

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(Pétala Lopes/Fotografia)

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As imagens que você viu nessa reportagem foram feitas por Pétala Lopes. Confira mais de seu trabalho aqui.

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