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Até quando games vão premiar violência sexual?

Nier: Automata dá um troféu para o jogador que colocar a câmera debaixo da saia da protagonista. Mas esse não é um caso isolado na indústria dos jogos

por João Varella Atualizado em 15 set 2020, 12h33 - Publicado em 15 set 2020 00h49
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(Estúdio Lambada/Ilustração)

proveite quando ela subir uma escada ou caixa. É o melhor momento para colocar a câmera debaixo da saia dela. Se estiver tudo certo, ela vai protestar, fará um gesto agressivo. Repita o processo até ganhar um troféu.

Essa é a fórmula para o jogador obter uma recompensa no jogo Nier: Automata. Festejado por público e crítica, trata-se de um título com ação intensa em um futuro distópico habitado por androides. A jornada traz à tona questões existencialistas profundas, como religião, lealdade e amor. E isso coexiste com um prêmio ao jogador que efetuar o ato de violência sexual contra 2B, a protagonista. Como entender essa gratificação? Uma piada? Caso de machismo nos videogames, mais um? Mancada do diretor? Analisar esse caso revela uma intrincada cultura, cheia de matizes.

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(Nier: Automata / Platinum Games/Reprodução)

É do jogo?

Nier não é o primeiro game da história a pedir algo imoral ou ilegal aos jogadores. Muitos jogos tem na violência a resolução de problemas e nem sempre para fins muito elevados. Para citar um exemplo extremo, basta lembrar que é necessário torturar um personagem para avançar em uma parte da história de GTA V. Como nos filmes, livros, teatro e em qualquer linguagem artística, nem tudo são flores nos games. O que causa um pouco mais de estranheza é o fato de o videogame ser uma mídia interativa. Diferente do espectador, o jogador participa das ações, algumas vezes decide ela. O que chama a atenção em Nier é se tratar de uma violência de ordem sexual e ter um reconhecimento valorizado pela comunidade de jogadores, um troféu. Mas já chegamos lá.

Nier: Automata foi desenvolvido pela empresa japonesa Platinum Games. Reconhecido por fazer boas mecânicas de combate, é o mesmo estúdio de Bayonetta, personagem que encarna dezenas de fetiches e é escancaradamente sexualizada. Quem distribuiu e é a dona da marca Nier é a também japonesa Square Enix, proprietária da popular franquia de RPG Final Fantasy. Sucesso de crítica e público, desde seu lançamento em 2017 vendeu 4,5 milhões de unidades. Os 10 milhões de assinantes do Game Pass, que a grosso modo funciona como um Netflix de jogos para Xbox e computador, também podem usufruir do game desde abril.

Game Pass é o carro-chefe da divisão de games da Microsoft, com estratégias agressivas para atrair novos usuários – dá para obter uma semana de acesso grátis na compra de um chiclete.

A câmera

Como é típico dos jogos de videogame em 3D, Nier: Automata dá ao jogador o controle da câmera. Com a alavanca analógica direita, é possível enquadrar elementos que estejam ao redor da protagonista – inclusive sua roupa íntima. Não é o primeiro jogo a permitir isso. Resident Evil 4, um dos pioneiros nesse esquema de controle, já previu que os jogadores fariam enquadramentos acintosos à personagem Ashley Graham. “Hey, o que você está olhando? Seu pervertido”, dizia ela quando o jogador mirava debaixo da sua minissaia. No mais recente Death Stranding, de 2019, o protagonista Sam Porter Bridges dá um soco na câmera caso a região de seu pênis fique muito tempo em evidência.

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(Nier: Automata / Platinum Games/Reprodução)

Em Nier, ao mirar debaixo da saia de 2B, a personagem reclama, se afasta da câmera em um gesto de desagrado, raro momento em que ela age sem responder aos comandos do joystick. Caso o jogador insista, ganha um reconhecimento valorizado entre os jogadores.

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(Steam/Reprodução)

Condecorações

Troféu ou conquista remontam ao high-score introduzido nos videogames por Space Invaders no final dos anos 1970. A pontuação máxima feita no dia ficava exposta e motivava jogadores a gastarem fichas em busca do objetivo nesse antigo fliperama. Para quem quiser saber mais, a origem de Space Invaders e outros jogos dessa época são retratadas no primeiro episódio da série GDLK, recém-lançada na Netflix. O high-score evoluiu, a pontuação foi abandonada na medida em que os fliperamas perderam força. Hoje, os jogadores de PlayStation 4, o console mais popular da atual geração, fazem parte de uma rede social chamada PSN. Nela, cada usuário tem um currículo gamer com as suas façanhas expostas e podem comparar com seus amigos.

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(Nier: Automata / Platinum Games/Reprodução)

Cada jogo traz um conjunto de tarefas específicas que desbloqueiam essas medalhas de honra virtuais. O jogo Star Wars Battlefront II, por exemplo, oferece um troféu de bronze para quem superar a missão “A Batalha de Endor”. Já o jogo Marvel’s Spider-Man reconhece com um troféu de prata quem encontra todas as mochilas de Peter Parker espalhadas pelo cenário. Não é necessário fazer isso para completar a história principal do jogo, mas as tarefas são entendidas como realizações positivas.

Reduzir troféus a uma busca egóica é incorreto. Também servem para guardar experiências marcantes, propõem desafios instigantes e oferecem uma maneira de se extrair mais horas de fruição dentre de um mesmo título, para além dos créditos finais. Ao cumprir todos os desafios, o jogador recebe um troféu de platina. “Platinar” virou verbo – não só relacionado a quem descolore o cabelo. Há comunidades virtuais imensas dos chamados complecionistas ou caçadores de troféus, dedicadas a trocar informações e facilidades para chegar na almejada platina. Para platinar Nier: Automata, portanto, é preciso olhar debaixo da saia da protagonista.

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(Nier: Automata / Platinum Games/Reprodução)

A descrição que abre este texto é mais ou menos a que se encontra nesses fóruns para obter o troféu “What are you doing?” (o que você está fazendo?), descrito oficialmente como “o segredo de 2B descoberto dez vezes”. O conjunto de troféus de um jogo pode ser aberto – basta checar na PSN para os requisitos para adquiri-lo – ou secreto, revelado caso o jogador ativamente queira saber o que tem lá. “What are you doing?” é do segundo tipo. Outros troféus mais próximos em termos de fazer algo imoral não relacionado ao jogo são dados por andar com um personagem masculino sem as calças por 60 minutos e outro por destruir dez robôs amigáveis. Fora isso, a lista de troféu de Nier é bem comum, com premiações por zerar o jogo, por exemplo.

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(Nier: Automata / Platinum Games/Reprodução)

Conquista

O Xbox, plataforma concorrente do PlayStation, tem a Live, sistema semelhante à PSN. Porém, em vez de troféus, as conquistas rendem pontos que são somados ao Gamerscore. O placar é valorizado no marketing da empresa. “Com US$ 79,96 em valor e 3.000 em Gamerscore”, diz a publicidade com os jogos de setembro da Live Gold, outro serviço de assinatura da Microsoft. What are you doing?” rende 15 pontos ao Gamerscore. No total, há mil pontos disponíveis em Nier: Automata. Além da pontuação, a Live faz um ranking entre os amigos do usuário elencando quem mais efetuou “tentativas voyeurs”. Assim como os troféus, tais rankings também ressaltam feitos entendidos como positivos, como por exemplo a quantidade de gols marcados em Rocket League ou carros conquistados em Forza Horizon 4.

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Sem o mesmo impacto dos consoles PlayStation e Xbox, a plataforma para computadores Steam vende o jogo e também prevê a conquista para quem colocar a câmera debaixo da saia da protagonista dez vezes.

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(Nier: Automata / Platinum Games/Reprodução)

Quem entende do assunto

Para prosseguir a análise, busquei a ajuda de mulheres que entendem do assunto. A desenvolvedora de games independentes Talita Rhein tem Nier: Automata como um dos melhores jogos de sua vida, apesar de ter suas ressalvas no que tange o tratamento das personagens femininas. Para ela, a conquista what are you doing? traz um dilema moral ao jogador. “Não acho que eles fizeram esse achievement em vão, é provocativo, porém fica uma mensagem meio rasa. Como o jogo tem tanto aprofundamento filosófico, poderia ter outro tipo de tratamento”, afirma. Segundo Talita, autora do jogo de cartas Dogo Dash, discussões, como a deste texto, talvez seja um objetivo do troféu.

Já a mestre em comunicação Dani Marino, especialista em cultura pop e questões de gênero, diz acreditar que o troféu é uma afirmação pública de que os criadores do jogo não se importam com as mulheres. “É no mínimo irresponsável que diante de tantos debates sobre como esse tipo de representação é nociva às mulheres”, afirma. Ela aponta como um problema das produções de massa em geral a concepção de personagens femininas por homens. “Elas agem a partir do que homens acreditam ser coerente com o que eles pensam sobre as mulheres, que geralmente parte de concepções bem machistas”.

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(Nier: Automata / Platinum Games/Reprodução)

Nier: Automata é dirigido por Yoko Taro, teve design de personagens de Akihiko Yoshida e modelos de Hito Matsudaira. Três homens. O resto das posições de comando do desenvolvimento do jogo também são ocupadas por homens. Durante um evento de 2017, Taro foi questionado sobre a razão de 2B usar salto alto. “Eu realmente gosto de garotas”, respondeu. “O nome da ação infligida à 2B é assédio sexual. Inclusive, com punição prevista em lei caso seja realizado fora dos jogos”, afirma Dani.

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(Nier: Automata / Platinum Games/Reprodução)

Cultura local ou global?

Um argumento muito utilizado em fóruns online sobre Nier: Automata é que a conquista discutida aqui é uma mensagem japonesa mal compreendida no Ocidente. “A despeito das singularidades da sexualidade japonesa, neste caso não me parece nada diferente do machismo universal, convertido em mais um entretenimento que objetifica a figura feminina”, explica Christine Greiner, pesquisadora do Centro de Estudos Orientais da PUC-SP e autora do livro como Leituras do corpo no Japão (N-1 edições). Beatriz Aoki, colega de Christine, complementa que tirar fotos debaixo da saia de mulheres é algo bastante representado na cultura pop japonesa. “Acho curioso também que, nas escadas rolantes de metrôs, é comum haver avisos para que as mulheres tomem cuidado”, disse, por e-mail.

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O troféu aqui em pauta é um pedaço de uma discussão ampla, que não se esgota aqui. Para quem quiser mergulhar mais, Beatriz indica acompanhar as pesquisas sobre cultura otaku do professor Patrick W. Galbraith. Rhein aponta a leitura de um artigo da Super Jump sobre como as mulheres são retratadas nos jogos do celebrado diretor Hideo Kojima. Marino sugere a leitura de dois artigos no site Minas Nerds, um sobre RPG e violência simbólica e outro sobre incels (sigla para “celibatários involuntários). O canal Feminist Frequency também tem uma série muito citada sobre o assunto.  

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(Nier: Automata / Platinum Games/Reprodução)
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