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Out of office: o futuro do trabalho pós pandemia

As transformações que a nova rotina de trabalho têm gerado na vida das pessoas e no mercado

por Carolina De Marchi 27 nov 2020 01h59
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(Rafael Sica/Ilustração)

Para além do momento de incerteza econômica e da realidade do desemprego, a pandemia também trouxe reflexões sobre novas possibilidades de lidar com o trabalho. O home office – ou, numa definição mais ampla, o out of office – foi condição imposta pela quarentena e vem mexendo tanto com as estruturas empresariais quanto com a maneira como as pessoas se relacionam com sua atividade profissional. Isso também provoca ansiedade para muita gente. De acordo com a mais recente pesquisa da Talk Inc, batizada de Zeitgeist da Pandemia, uma das principais preocupações de 87% dos brasileiros é a perspectiva na carreira e 57% pretende mudar sua relação com o trabalho.

Vale lembrar que tal modelo é possível apenas em certas áreas. Afinal, o(a) caixa de supermercado, por exemplo, não tem o mesmo privilégio e possivelmente não poderá fazer seu trabalho remotamente. O mesmo vale para um operário da indústria. Ambas atividades, inclusive, correm alto risco de extinção em função da automação cada vez mais crescente. Outros setores bastante afetados pela pandemia são os de eventos, de restaurantes e, talvez o campeão da recessão, o turismo.

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Trabalho remoto: adequação com altos e baixos

A pesquisa da Talk Inc realizada no mês de julho incluiu etapas quantitativa e qualitativa e conversou mais de 1.300 brasileiros de diferentes classes sociais, atividades profissionais e regiões do país. Num primeiro momento de euforia do tempo livre, alguns embarcaram em novos aprendizados, criaram novas rotinas e organizaram tempo para aproveitar a própria casa e a família. No entanto, 53% dos entrevistados estão muito preocupados com as perspectivas de trabalho e carreira. Entre os mais apreensivos, estão os jovens de classe D e E. Segundo Carla Mayumi, sócia da Talk Inc e uma das coordenadoras da pesquisa, as pessoas estão incomodadas, mas se adaptando à nova realidade. “Há muita incerteza no ar e isso gera ansiedade por normalizar a vida. Quem tem emprego fixo teve um certo apoio institucional para essa transição, mas quem é trabalhador autônomo ou informal se sentiu muito sozinho e desamparado”, relata. Ao mesmo tempo, quem não tinha um trabalho com carteira assinada se viu numa espécie de trampolim do ‘vou ter que aprender por minha conta’, quebrando certas barreiras e até saltando etapas na base da criatividade. “Podemos identificar o fenômeno de leapfrogging, usado para denominar o que acontece em muitos países em desenvolvimento: a inovação acontece mesmo nos lugares mais remotos ou nas camadas menos privilegiadas, graças ao uso da tecnologia, especialmente do celular. Aqui no Brasil, o WhatsApp tem um papel muito importante na prestação de serviços, por exemplo. A padaria, a farmácia, a feira, a marmita do bairro, tudo está no Whats.”

“Podemos identificar o fenômeno de leapfrogging, usado para denominar o que acontece em muitos países em desenvolvimento: a inovação acontece mesmo nos lugares mais remotos ou nas camadas menos privilegiadas, graças ao uso da tecnologia, especialmente do celular”

Carla Mayumi

Para Fernando Lanzer, psicólogo e consultor de lideranças e cultura, autor do livro Out of office: o funcionário digitalizado, o processo de aceleração desse comportamento chegou de maneira repentina e está sendo sentido pelo mercado e pelas pessoas. “Parece simples, mas há consequências psicológicas que impactam em ambas partes. É responsabilidade das empresas treinar e oferecer suporte às pessoas para trabalhar em casa. Desde o laptop, às questões ergonômicas, passando por conexão à internet, iluminação, entre outros aspectos que compõem as condições ideais de trabalho.” A representação física da empresa é também um diferencial e contribui significativamente na identificação e no engajamento do funcionário, sem falar no processo de deslocamento. “Muita gente usava o período de traslado para estudar, adiantar coisas, se preparar para o dia. O próprio caminho, o entrar no prédio, subir num elevador, chegar até sua estação de trabalho. Tudo é um ritual quase inconsciente e, quando você trabalha de casa, isso muda,” afirma. “E tem ainda a volta para casa. O coleguismo do happy hour, baixar a adrenalina, a desconexão. Agora, você desliga o computador e já está em casa. Não tem mais o processo físico. Isso pode ser meio chocante para a pessoa, exige adaptação e flexibilidade.” Segundo ele, as empresas terão que pensar em como substituir esse processo, além de criar e cultivar a cultura organizacional no ambiente virtual se quiserem manter os empregados engajados.

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De acordo com Fernando, também autor do livro Cruzando culturas sem ser atropelado – Gestão transcultural para um mundo globalizado (Ed. Évora, 2014), uma certa empolgação generalizada com o trabalho out of office ignora diferenças entre países. Em culturas anglo-saxãs e algumas norte-europeias, o foco da comunicação está mais no conteúdo da mensagem. Por isso, a transição para as vídeo chamadas no lugar das reuniões presenciais é vista como uma grande vantagem, porque tendem a ser mais pragmáticas e objetivas. O mesmo vale para o trabalho remoto como um todo, já que, em países como a Alemanha, existe muito mais autodisciplina. Já no Brasil, o controle depende da figura do chefe. “As pessoas terão que carregar o peso da liberdade: internalizar o controle significa carregar esse peso também, já que costumam fazer as coisas só quando são cobradas”. Na opinião dele, existe uma curva de aprendizado mais íngreme para o brasileiro e todos os latinos em geral. “Não é impossível, apenas mais difícil. Por aqui, também existe mais sensibilidade sobre a forma como nos comunicamos. Os negócios são baseados no contato informal, muito além do e-mail. O foco é na forma como entregamos a mensagem”, diz. Ele ainda ressalta que os brasileiros têm mais capacidade de empatia, mas acabam perdendo muito da relação interpessoal com o distanciamento social.

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(Rafael Sica/Ilustração)
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O desafio de largar o osso

A pesquisa da Talk Inc aponta que o imprevisto gerou mais proximidade com as lideranças, o que é visto como algo positivo por alguns. No entanto, Carla também conta que há muita queixa da falta de fronteiras por parte de gestores, que não respeitam horários e acham que os funcionários estão disponíveis 24 horas por dia. “Em primeiro lugar, os gestores terão que aprender a largar o osso”, afirma Fernando. “Porque terão menos sensação de controle e não terão a mesma atenção ao seu ego.” É possível utilizar outros mecanismos de controle, claro, mas estes serão muito mais voltados para o resultado do trabalho do que o monitoramento visual que se tinha presencialmente.

“As pessoas terão que carregar o peso da liberdade: internalizar o controle significa carregar esse peso também, já que costumam fazer as coisas só quando são cobradas”

Fernando Lanzer

Uma das tendências apontadas do novo cenário é a necessidade de desenvolver as habilidades emocionais. “Falamos muito nas habilidades hard, como o pensamento crítico, o racional. Isso será importante, mas ainda mais essenciais serão as soft skills, ou seja, a empatia e uma comunicação clara. Na situação out of office, é mais necessário e também mais difícil fazê-lo”, comenta o consultor. Ele acredita que as áreas de Recursos Humanos terão que se modernizar e o mercado como um todo terá que ter muito mais sensibilidade.

Híbrido

Tudo indica que estamos caminhando para um redesenho do modo de trabalho como um todo, em que a flexibilidade é o nome do jogo. Ao mesmo tempo em que o trabalho remoto traz vantagens na logística de moradores dos grandes centros urbanos, 20% das pessoas afirmam que voltar à rotina de trabalho está entre as três coisas que elas mais sentem falta, segundo o estudo da Talk Inc. Talvez o futuro seja um meio de caminho entre o out of office e o presencial: os trabalhadores ainda irão ao escritório, mas apenas duas ou três vezes por semana – como já acontece em muitos em países da Europa e em alguns espaços de coworking e startups no Brasil. “A nova realidade vai ser híbrida e bem mais personalizada, uma combinação do que a tarefa demanda, mas também da personalidade do profissional e o que ele exige. Eu gostaria de ver os profissionais de RH e gestores terem mais flexibilidade e arriscarem, experimentarem mais”, opina Fernando. “A realidade não vai ficar cristalizada e teremos que ser capazes de ir mudando, inovar de verdade, aprendendo com o processo.”

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(Rafael Sica/Ilustração)

Já existe o emprego do futuro?

Home office, projetos colaborativos, resiliência, autonomia de áreas, ambiente inovador e gestão disruptiva são conceitos que já se tornaram clichês frequentemente associados a “empresas do futuro”, mas será que o discurso é colocado em prática no Brasil? Há quem diga que, em várias organizações, a fama fica só da porta para fora. Mas não em todas. A AKQA Casa, em São Paulo, funciona como um laboratório criativo experimental para toda a rede da agência, cujo modelo de negócio é focado na ideia, independente do formato. São 30 estúdios em 20 países nas áreas de arquitetura, design, pesquisa, tecnologia, entre outros. Para além das especialidades, são times e pessoas que vivem em outras culturas, têm outras visões de mundo. “A pandemia acelerou o que a gente já fazia. Como estamos organizados em uma grande rede remota, altamente adaptável, pra gente não foi difícil. Pensamos na empresa como um escritório com várias salas em diferentes partes do mundo. Funciona mesmo. Os próprios clientes passaram a entender mais o nosso modo de funcionamento e abriram ainda mais oportunidades”, afirma Renato Zandoná, diretor executivo de criação.

“A nova realidade vai ser híbrida e bem mais personalizada, uma combinação do que a tarefa demanda, mas também da personalidade do profissional e o que ele exige”

Fernando Lanzer

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No mercado de vender “ideias”, para manter o time criativo e inspirado, a empresa incentiva os funcionários a explorarem novas frentes e, quando era possível, abriam as portas da AKQA Casa para artistas e coletivos. Já abrigaram startups e promoveram eventos de música e gastronomia, se tornando um ponto de referência cultural da cidade. Agora, o desafio é seguir fomentando a dinâmica em outros formatos, até a reabertura. “A cultura está nas pessoas, mas é inegável que a casa teve um papel importante nessa formação e que se perde um pouco com o contato físico”, admite Renato. “Procuramos colocar as pessoas em contato com a diversidade de contextos. É sobre estarmos abertos, ter troca de informação, de estratégia. Liberdade e alta capacidade de adaptação e customização.” Essas questões não só são contempladas, como já propõem novas relações que incluem fluidez de função, proximidade com lideranças e novos acordos.

O objetivo é cultivar um ambiente que motive as pessoas a se arriscarem, sem se limitarem a formatos e processos tradicionais do mercado. Parece que dá certo. A AKQA Casa foi premiada como um dos melhores locais de trabalho para inovadores pela prestigiada revista Fast Company e reconhecida por projetos para artistas como Baco Exu do Blues, Usher e Emicida e marcas como Netflix, Nike e Google. A empresa está lançando, em meio à pandemia, um programa de estágio para seis pessoas de todas as partes do Brasil. “É a primeira vez que vamos ter estagiários de outras partes do país, ou seja, não precisa estar em São Paulo para trabalhar com a gente. O programa terá também uma mentoria para o estagiário ter um acompanhamento de perto. Todos irão receber uma estrutura para trabalhar”, conta o diretor.

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Trabalho com propósito ou propósito de vida?

Uma coisa está clara: não existe apenas um futuro possível para o trabalho. Não há uma fórmula que se encaixe a todos. Fernando Lanzer expressa sua preocupação com quem ficará (ou já está ficando) para trás nesse cenário. “A nova narrativa é plural, mas também desigual. Tem muita gente que está perdida, se sente incapaz e tem medo”. Ele arrisca afirmar, inclusive, que esse estado afeta também política, pois a incerteza e o medo geram uma certa nostalgia e busca ao passado, o que leva a uma tendência ao conservadorismo.

E se as placas tectônicas do panorama macro andam tremendo, as mais íntimas também. Afora todas as transformações que estão acontecendo dentro das empresas e as que ainda precisam ser colocadas em prática, há algo se transformando dentro das pessoas. Segundo a Talk Inc, a época é de reflexões mais profundas, que dizem respeito à importância do sentido do trabalho. O distanciamento físico fez com que as pessoas parassem para pensar sobre onde moram, a possibilidade de sair de um ritmo frenético de produtividade e o quanto o automático da rotina era um bloqueio para o autoconhecimento. “Mudanças de planos e prioridades entram em cena, tanto que 70% das pessoas também querem mudar sua relação com o dinheiro”, sinaliza Carla Mayumi. Isso impacta na noção de valor do tempo de cada um. “Estamos falando menos do conceito de trabalho com propósito e muito mais numa vida que tenha propósito e um trabalho que faça parte dela”, conclui.

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As imagens que você viu nessa reportagem foram feitas por Rafael Sica. Confira mais de seu trabalho aqui

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