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Por que a extrema direita se interessa tanto por videogames?

No Brasil, 67 milhões de pessoas têm games entre seus hobbies. No mundo, muito mais. E esses eleitores podem decidir o futuro de muitas eleições

por João Varella 4 dez 2020 00h43
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(Marcus Penna/Ilustração)

m bando de deputados quer cuidar das políticas públicas relacionadas ao videogame. Não há ninguém do setor no grupo, montado em março deste ano, para debater o assunto no Congresso. O presidente da Frente Parlamentar Em Prol dos Esportes Eletrônicos e Games é o coronel do Exército João Chrisóstomo de Moura (PSL-RO). Ele também participa das chamadas bancadas da bala e da Bíblia. Abaixo de Chrisóstomo na hierarquia do grupo do game estão Aline Sleutjes, primeira vice-presidente, e Luiz Lima, segundo vice. Têm em comum a filiação ao PSL, o partido que elegeu Jair Messias Bolsonaro presidente da República.

Bolsonaro é o mesmo que abriu guerra contra os segmentos de arte e cultura. Desde que ele assumiu Palácio do Planalto, o Ministério da Cultura foi rebaixado à condição de secretaria, o apoio de entidades públicas à arte minguou, a Lei Rouanet é constantemente ameaçada e por aí vai. Já o videogame recebe tratamento oposto. Já foram duas reduções de impostos, conversas amigáveis com jogadores e postagens em redes sociais de partidas.

A escalada dos políticos conservadores nos videogames não é coincidência. Entender a razão disso revela um pouco mais sobre a escalada da direita populista no Brasil e no mundo.

Prefeitura em jogo

A pauta do joystick esteve nas eleições municipais. Lima, da frente do videogame, foi candidato à prefeitura do Rio de Janeiro, município dominado por milícias e sede política do clã Bolsonaro. Em São Paulo, o candidato mais alinhado com o bolsonarismo era Celso Russomanno (Republicanos), que liderou as primeiras pesquisas de intenção de voto. Ele prometeu “professores de games” nas escolas municipais. Durante um debate transmitido pela Band, colocou na mesma frase uma promessa para atender “atletas esportivos” e “atletas de games”, um reconhecimento que soa como música para o cada vez mais relevante mundo do e-sport.


Games são parte da estratégia da alt-right, a nova extrema direita que surgiu nos Estados Unidos na década passada. Deu em Trump, deu em Bolsonaro, e ninguém sabe no que ainda pode dar.

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(Marcus Penna/Ilustração)

Farmar, verbo intransitivo

O ano é 2006. Muito antes de comandar a campanha que levaria Donald Trump à Casa Branca, o norte-americano Stephen Bannon conseguiu arrecadar de bancos e investidores US$ 60 milhões para financiar a Internet Gaming Entertainment (IGE). Com sede em Hong Kong, essa empresa era especializada em arrecadar dinheiro virtual em games e trocar por dinheiro real dos jogadores.

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World of Warcraft era a especialidade da IGE. Trata-se de um jogo desenvolvido pelo estúdio Blizzard que coloca milhões de jogadores interagindo ao mesmo tempo em um mundo virtual de fantasia medieval. Tinha na época cerca de 10 milhões de usuários.

O ato de executar tarefas repetitivas para acumular recursos em jogos de videogame é conhecida no Brasil vulgarmente como farmar. Muitos não se divertem com isso ou não tem tempo. Por isso, apelavam para empresas como a IGE para fazer o serviço chato.  A IGE produzia os bens virtuais em escala industrial. Oferecia remunerações baixas. A diferença de fuso horário em relação ao Ocidente ajudava nos negócios. As horas do jogador não coincidiam com a da empresa contratada para fazer o serviço sujo.

Bannon tirou importantes lições da experiência. Segundo o livro Devil’s Bargain, de Joshua Green, a experiência com World of Warcraft “forneceu uma espécie de estrutura conceitual que ele mais tarde utilizaria para construir o público do Breitbart News e, em seguida, para ajudar a organizar os exércitos online de trolls e ativistas que invadiram a política nacional e ajudaram a dar origem a Donald Trump”.

“[A experiência com World of Warcraft] forneceu uma espécie de estrutura conceitual que ele mais tarde utilizaria para construir o público do Breitbart News e, em seguida, para ajudar a organizar os exércitos online de trolls e ativistas que invadiram a política nacional e ajudaram a dar origem a Donald Trump”

Joshua Green, autor de Devil's Bargain
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(Marcus Penna/Ilustração)

Breitbart, a casa do troll

Jogadores com discursos radicais habitam fóruns da internet como o 4chan, 8chan, reddit e Twitter. Espaços virtuais onde dá para bater e esconder a mão, postar a partir de perfis anônimos. Usuários desses sites fornecem material para a direita extremista, como o meme anti-semita de “Pepe, o Sapo”.

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Com base nessa dinâmica que Bannon, ao assumir o comando do site conservador Breitbart News, contratou o antifeminista Milo Yiannopoulos para ser editor de tecnologia, em 2015. Bonito e bem articulado, Yiannopoulos agia como um típico troll de internet. Um escândalo envolvendo a videogames oportunizou a Bannon posicionar Yiannopoulos e o Breitbart como referência extremista.

A oportunidade veio com o Gamergate. Esse caso teve como estopim um rancoroso post sobre o término do namoro. No texto, o cientista da computação Eron Gjoni, então com 20 e poucos anos, se lamúria após terminar com a desenvolvedora Zoë Quinn.

Intitulado The Zoe Post, o texto com mais de 9 mil palavras foi entremeado por mensagens privadas. A repercussão foi enorme, em especial um trecho em que o ex-namorado acusa Quinn de ter se relacionado com o jornalista Nathan Grayson, do site especializado em videogame Kotaku. Quinn teria feito isso para obter reportagens e resenhas positivas sobre o jogo que criara, o Depression Quest.

Parte dos gamers viram no texto de Gjoni a prova cabal de corrupção da mídia especializada. O jornalista em questão nunca resenhou Depression Quest, mas a verdade é mero detalhe quando a misoginia toma conta.

Quinn viu os ataques que sofria desde que o jogo repercutiu aumentar ainda mais após o texto do ex. Dados pessoais dela circularam pelos fóruns anônimos que estavam no radar de Bannon. Feministas e outras mulheres vinculadas ao mercado de games também foram atacadas. Yiannopoulos, que desprezava videogames, mudou de opinião e fez de tudo para colocar os jogadores em choque contra as feministas.  O Gamergate é um caso tão amplo e estudado que tem até uma wiki própria. O New York Times qualifica o Gamergate como a máfia online que criou o manual para a guerra cultural.

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“Percebi que Milo poderia se conectar com essas crianças imediatamente”, disse Bannon, de acordo com o livro Devil’s Bargain. “Você pode ativar um exército. Eles entram por meio de Gamergate ou qualquer outra coisa e então se voltam para a política e Trump”.

Bannon do Brasil

Com sua mistura de opiniões radicais, acenos racistas e informações distorcidas, o Breitbart News catapultou Bannon à posição de conselheiro e estrategista de Trump na campanha de 2016. Virou referência para toda a direita populista no mundo, incluindo o clã Bolsonaro.

Bannon declarou apoio ao então candidato à presidência Jair Bolsonaro em 2018. Aparentemente sem ironias, chamou Jair de “brilhante” e “sofisticado” em entrevista à BBC. Bannon viria a estreitar laços com os filhos e ministros.

Não é possível afirmar que Bannon deu conselhos específicos sobre videogame, mas a postura de Bolsonaro mudou. Em 2013, na TV Gazeta, Bolsonaro disse que o videogame era um crime, que não ensinam nada e devem ser coibido “o máximo possível”.  Dias depois de ser eleito, Bolsonaro divulgou um vídeo em que jogava Farpoint no PlayStation VR, aparelho de realidade virtual da Sony. Já empossado, usou música do Sonic, o mascote da Sega, em um vídeo, o que causou reboliço entre os jogadores.

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A pauta gamer surgiu com tudo em julho do ano passado, quando Bolsonaro interagiu nas redes sociais com jogadores famosos do e-sport no Brasil, principalmente de Counter-Strike: Global Offensive, jogo em equipe de tiro em primeira pessoa. Um dos e-atletas mais famosos do Brasil, Gabriel “FalleN” chegou a receber uma ligação do presidente. A escolha por CS:GO não parece ser aleatória. É comum na comunidade o uso do termo “barbudo” como sinônimo de trapaceiro e “mito” para alguém habilidoso. Para quem acompanha política brasileira, a mensagem está entendida.

Semanas depois de entrar em contato com os jogadores, Bolsonaro assinou um decreto que baixou o imposto de jogos. A CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado foi no embalo e aprovou uma proposta de emenda constitucional que dá isenção a jogos e consoles nacionais. Bolsonaro repetiria o ato em 2020. Sony e Microsoft reduziram o preço sugerido de seus consoles, aguardados ansiosamente pelos jogadores. O filho 03 de Bolsonaro aproveitou para colher os dividendos políticos:


Quem toca o e-sport na família é Jair Renan Bolsonaro. Streamer que chegou a ser banido da plataforma Twitch por disseminar informações falsas, ele fez uma visita a Mario Frias, secretário especial da Cultura. “O futuro do ‘e-sport’ sendo pautado”, disse o filho 04 na legenda da foto postada no Instagram. Na imagem, Jair Renan aparece ao lado de Frias, diante de uma bandeira brasileira e um retrato do pai.

Kim Kataguiri

Nem só de Bolsonaro vive a direita. O deputado Kim Kataguiri (DEM-SP), um dos fundadores do Movimento Brasil Livre, protocolou no Ministério da Economia um pedido de redução de impostos para videogames. Participou também de uma transmissão ao vivo do game Among Us com Arthur do Val (Patriota-SP). Mas aí já toca num terreno que a esquerda chegou antes.

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(Marcus Penna/Ilustração)

Esquerda, volver

Quem fez live de Among Us antes foi o candidato do PSOL, Guilherme Boulos. Depois, a deputada norte-americana Alexandria “AOC” Ocasio-Cortez fez o mesmo, mais um flagrante caso de gringos imitando (é meme, gente).

E há mais sinais apontando que a esquerda apertou start. Na Câmara Municipal de São Paulo foi formada em maio a Frente Parlamentar de Apoio ao Setor de Games e Jogos Eletrônicos, composta por membros de centro e esquerda, como Soninha Francine (PPS) e Eduardo Suplicy (PT). Em agosto foi a vez da formação da Frente Parlamentar de Games e Jogos Eletrônicos em Santa Catarina, que tem o deputado petista Fabiano da Luz entre seus membros.

Já não era sem tempo. Segundo o pesquisa BGS/Datafolha, 67 milhões de brasileiros têm hábito de jogar videogame em seu tempo livre, um número decisivo em qualquer pleito.

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As imagens que você viu nessa reportagem foram feitas por Marcus Penna. Confira mais de seu trabalho aqui

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