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Se vira

Em uma crise econômica tão profunda quanto a de 1929, brasileiros e migrantes empreendem e encontram novas formas de se sustentar durante a pandemia

por Lara Santos Atualizado em 8 set 2020, 11h15 - Publicado em 8 set 2020 02h21
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(Clube Lambada/Ilustração)

 fato: a pandemia do novo coronavírus escancarou inúmeras fragilidades do ser humano, dos governos e do sistema no qual estamos inseridos. A economia mundial, por exemplo, enfrenta sua crise mais profunda desde a Grande Depressão de 1929. E é claro que o Brasil não ficou imune, deixando 12,4 milhões de pessoas desempregadas e 7 milhões de trabalhadores afastados, segundo dados divulgados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em julho. 

Mas, mesmo diante tantas incertezas, este momento difícil também foi cenário para muitos tirarem suas ideias do papel. Desde março, o Portal do Empreendedor registrou por volta de 550 mil novos microempreendedores no país e, comparado ao mesmo período de 2019, houve um aumento de mais de 16 mil cadastrados. Esse número ainda exclui os empreendedores informais, como Clara Rocca e Nicolás Gotting, que abriram a Herencia del Tiempo – herança do tempo, em português – “a padaria artesanal mais florida de São Paulo”, de acordo com a bio deles no Instagram.  

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(Herencia del Tiempo/Divulgação)

Assim como milhares de brasileiros, os dois sentiram os impactos da pandemia em suas profissões. Nicolás é gerente de um restaurante no bairro da Barra Funda que, depois de um primeiro ano de sucesso, teve de fechar suas portas temporariamente, e Clara, produtora cultural, não tinha mais eventos para organizar. O casal se viu sem renda e passou a enxergar a oportunidade de começar o próprio negócio, mas não antes de mudar de casa.

“Estávamos morando no nosso antigo apartamento e comecei a ficar muito angustiada com o fato de continuar pagando o aluguel”, conta Clara. “Minha avó, então, ofereceu para morarmos em uma parte inutilizada da casa dela e essa foi a virada pra gente”. Com mais espaço e menos despesas fixas, o que ambos reconhecem ser um privilégio, se jogaram no universo dos pães e das flores. 

A ideia veio despretensiosamente quando a produtora cultural sugeriu que o marido começasse a vender pães de fermentação natural, já que ele tinha cursado gastronomia na Argentina, seu país natal, e amava preparar comidas tradicionais. Mas Nicolás se opôs a esse impulso. “Falei que tinha que estudar mais para fazer algo realmente bom e legal”, explica. E, de fato, ele estava certo: toda simplicidade que existe nos ingredientes de um pão não existe em seu processo de fermentação. 

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Graças um dinheiro que tinham guardado e da ajuda de familiares, eles investiram nos utensílios necessários, com exceção de um que não encontraram devido à “pãodemia”, e Nicolás começou a estudar e testar inúmeras receitas. Enquanto isso, Clara já estava às voltas com um outro pensamento: além dos pães, por que não vender flores também? “Senti que tinha de fazer isso. No meu casamento, produzi toda a decoração e, quando fui comprar flores no Ceasa pela primeira vez, fiquei maravilhada. Hoje é um dos ‘rolês’ que mais gosto de fazer na vida”, diz. Além de seguir um pouco a tendência de buquês desconstruídos, ela decidiu que queria vender arranjos com sua própria personalidade, com um ar de “flores do campo”.

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(Herencia del Tiempo/Divulgação)

Assim nasceu o Herencia del Tiempo. O nome surgiu inspirado no pão, alimento considerado sagrado em diversas culturas e base da humanidade por anos. “É uma herança cultural passada de boca em boca, mãos em mãos, por gerações. Nós nunca deveríamos ter perdido esse hábito”, afirma Nicolás. Clara e ele brincam que é como se fossem ativistas do pão de fermentação natural, militando para que deixemos de consumir os industrializados e enxerguemos o pão como aliado, em vez de inimigo.

“A pandemia trouxe uma certa urgência e ter um projeto em mãos nesse momento tem sido um grande alívio”

Clara Rocca

E eles têm sido bem-sucedidos nisso desde que o empreendimento abriu oficialmente no dia 22 de julho, apesar de ainda se sentirem inseguros. Mas como não, né? Dentro desse cenário tão desconhecido, precisamos nos adaptar – e isso também serve para o mundo dos negócios. “Nosso maior desafio vai ser a parte das entregas. Queremos oferecer os produtos de maneira segura, já que estamos levando coisas para dentro da casa das pessoas. É uma super responsabilidade”. 

Por outro lado, os dois acreditam que, se não fosse a circunstância atual, talvez não tivessem criado o Herencia. “A pandemia trouxe uma certa urgência e ter um projeto em mãos nesse momento tem sido um grande alívio”, relata Clara. 

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(Herencia del Tiempo/Divulgação)

Sobre as águas 

O casal não foi o único que decidiu abrir um negócio voltado à comida em plena crise do novo coronavírus. Alexander Malcoaccha, nascido em Arequipa, no Peru, também foi um desses destemidos. Migrante, veio para o Brasil em 2001 para fugir da crise e de um governo que considerava terrorista e, quando chegou a São Paulo, se aventurou no mercado de bares, caterings e food trucks. “Comecei a me aperfeiçoar na área da gastronomia e ganhei uma bolsa para estudar no Senac. A cidade recebe muito bem estrangeiros”, conta, agradecido. 

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(Alexander Malcoaccha/Divulgação)

Ao terminar o curso, no qual disse ter se destacado como aluno, trabalhou em dois hotéis e, em 2019, conseguiu uma oportunidade como chef de um barco particular. A embarcação viaja para diversas regiões, inclusive a Antártida, mas depois de uma missão no Nordeste do Brasil teve de ser ancorada por tempo indeterminado devido à pandemia. Diferente da maioria das pessoas, o isolamento social de Alexander e do resto da tripulação se deu sobre as águas, no porto de Ilhabela, em São Paulo. 

Foi em um dos únicos municípios-arquipélagos marinhos do país que o peruano encontrou uma chance de colocar em prática sua visão empreendedora. “Vi um imóvel que estava passando o ponto e procurei o proprietário. Nunca achei que encontraria um lugar com essa localização e um preço desses na Ilhabela”, expõe. Ele, então, negociou o espaço e já está preparando a abertura de seu restaurante, Mach’aa Bela (Mach’aa significa Mar, em quechua), para outubro. 

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(Alexander Malcoaccha/Divulgação)

No início da conversa com Elástica, a ideia de Alexander pareceu ousada, mas, na verdade, é como se ele tivesse planejado tudo há anos. O cardápio vai ser baseado na culinária peruana e com um preço acessível, “para que as pessoas se alimentem bem e conheçam um pouco da cultura”; ele vai dividir o negócio com um amigo, que é dono de restaurantes em Lima, capital do Peru; e pretende fazer parcerias com pequenos produtores da ilha, visando a sustentabilidade dos produtos. Para todas as perguntas, uma resposta na ponta da língua. O timing da pandemia também não parece assustar. “É um risco como qualquer negócio, mas com pensamento positivo consigo enxergar muita coisa boa”, assegura.

Corrente do bem 

De acordo com a pesquisa do IBGE de junho, a maior proporção de pessoas afastadas do trabalho durante o distanciamento social é a de trabalhadores domésticos sem carteira assinada e 8,6% de trabalhadores afastados deixaram de receber remuneração nesse período. Luciana Ferreira continuou sendo paga pela sua ocupação de diarista, apesar de não precisar ir, mas viu seu marido, manobrista, ter uma diminuição de renda e seu filho de 18 anos perder o emprego e ficar sem aula, já que não tinha computador para estudar. 

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Além de oferecer apoio emocional, Luciana quis encontrar outra forma de contribuir financeiramente com as necessidades da família. “Eu poderia ter ficado em casa, mas quando vi a tristeza no olhar do meu marido e filho, eu percebi que precisava fazer algo. A gente não pode se acomodar ou esperar as ações do poder público. Você tem que fazer a sua parte”, constata. 

“Vi o preço da máscara nas farmácias e percebi que não condizia com a realidade do nosso país”

Luciana Ferreira

Já envolvida com a produção gratuita de máscaras para o Lar Batista, organização cristã que atende crianças e adolescentes no Estado de São Paulo, Luciana decidiu começar a usar sua máquina de costura para vender seu trabalho por um valor acessível. “Vi o preço da máscara nas farmácias e percebi que não condizia com a realidade do nosso país”, argumenta. Com o poder do boca a boca, ela começou a receber mensagens de amigos pedindo para fazer outros produtos, como panos de prato, e aceitou o desafio. 

Afinal, Luciana sempre teve vontade de criar e ver suas peças expostas em algum lugar. Para isso, bastou o empurrão da pandemia e de sua filha de 9 anos, Maria Clara. “Ela é minha musa inspiradora. Em uma conversa de mãe e filha, ela me perguntou qual era meu sonho e eu disse que era comprar nossa casa e abrir o atelier”, conta. “Aí ela me disse que eu já estava fazendo isso, só faltava formalizar.” 

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(Camaleoa/Divulgação)

Então, nomeou o empreendimento de “Camaleoa” por ter um intuito de reformar e transformar roupas velhas. Ainda que esteja sem registro por questões jurídicas, o negócio ganhou um logotipo e muitos planos para o futuro. 

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Hoje, Luciana tem tanta demanda que acaba trabalhando todos os dias da semana, inclusive naqueles que ela presta serviço como diarista. Para não sobrecarregá-la, o marido e os filhos passaram a cuidar da casa, enquanto ela cria vestidos, toalhas de rosto, máscaras e outros produtos. Mas ela garante que o segredo do sucesso não está apenas em seu esforço, e, sim, na fé em Deus e o fato de que, quando você faz o bem, ele volta dobrado.

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(Zumba Maick Reis/Divulgação)

Produção em massa 

Em abril, a OMS recomendou o uso de máscaras caseiras para a prevenção do novo coronavírus e prefeituras de diversas cidades brasileiras passaram a obrigar o uso dessa proteção nas ruas. Por isso, assim como Luciana, o angolano Heleno Francisco, mais conhecido como Zumba, também resolveu investir no mercado de máscaras durante a pandemia.

Ele chegou ao Brasil em 2012, depois de participar de um evento de capoeira em Brasília e se encantar pelo país. Três anos depois, começou a trabalhar registrado como roadie (gíria em inglês para os técnicos que acompanham bandas em turnê), emprego que mantém até hoje. Mas, com o isolamento social, eventos com aglomerações foram proibidos, o que deu origem à onda de lives que assistimos nos últimos meses. 

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(Zumba Maick Reis/Divulgação)

“Virou um mundo virtual”, afirma. “Mas as lives não acontecem todos os dias, só trabalho de sábado. Então, para não ficar de segunda a sexta-feira à toa, eu comecei a vender as máscaras.” 

Zumba já vendia tecidos africanos que encomendava ou comprava quando ia para a Angola, então começou a fazer máscaras nesse estilo. “Eu fiz 28 unidades e vendi todas, até que as pessoas começaram a me falar para fazer uma produção maior para atender todo mundo”, relata. 

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Estabeleceu, então, uma parceria com um colega boliviano que é dono de uma oficina e, assim, a produção aumentou para 2 mil máscaras. “Ele não me cobra nada e eu sou responsável pelas vendas. Fico na rua ofertando nosso produto”, explica. Na manhã do dia que conversou com Elástica, ele tinha feito uma entrega de 400 máscaras para uma pessoa. 

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(Zumba Maick Reis/Divulgação)

Com o aumento da produção, Zumba começou a criar máscaras em outras estampas, já que, com o fechamento de fronteiras na Angola, não era possível comprar mais tecidos africanos. Também resolveu inovar nos modelos, ofertando máscaras 3D –  segundo ele, essas são ótimas para quem usa óculos. 

Apesar das apostas pela distribuição de uma vacina contra o novo coronavírus ainda em 2020, Zumba está positivo com seu negócio. “Não é descobrindo a vacina que vamos parar de usar máscara. Não é, assim, do dia pra noite”, declara.

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