envolvimento

Comer é um ato político

Campanha “Gente é pra brilhar” reúne mais de 100 organizações do terceiro setor, cozinheiros e voluntários com um único propósito: combater a fome

por Beatriz Marques Atualizado em 27 out 2020, 19h18 - Publicado em 26 out 2020 22h57
-
(Clube Lambada/Ilustração)

fome voltou às principais manchetes neste ano. O maior agravante foi, sem dúvida, a pandemia. O estrago que a covid-19 vem fazendo na população carente, com impacto nas necessidades mais básicas, soou o alarme para uma situação que ainda se perpetuará por muitos anos no Brasil.

A iminente reinclusão do país ao Mapa da Fome pela Organização das Nações Unidas (ONU) – ou seja, mais de 5% da população retornou à extrema pobreza, a primeira vez desde 2014 – e o recente desmonte de políticas públicas a favor da soberania alimentar, como a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e ameaças ao Guia Alimentar Para a População Brasileira pelo Governo Federal, reforçaram a urgência de resposta da sociedade.

“A falta de empenho de governos em trazer soluções rápidas fez a com que as ações solidárias por parte da sociedade civil virassem protagonistas neste cenário desolador”, diz Simone Gomes, cozinheira e uma das lideranças do coletivo Banquetaço. O grupo, que desde 2017 atua para fortalecer a defesa do direito humano à alimentação adequada e saudável, reuniu forças com outras organizações para lançar a campanha “Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”.

-
(Marcela Oliveira/Fotografia)

“A falta de empenho de governos em trazer soluções rápidas fez a com que as ações solidárias por parte da sociedade civil virassem protagonistas neste cenário desolador”

Simone Gomes, coletivo Banquetaço
Continua após a publicidade

Durante os dias 12 a 16 de outubro, na Semana Mundial da Alimentação, a campanha realizou uma série de painéis on-line sobre o tema (todos disponíveis no YouTube), com participação de pesquisadores, nutricionistas e especialistas em alimentação, como apresentadora Bela Gil. E, nos dias 17 e 18, finalizou com uma versão do Banquetaço adaptado à pandemia: um Marmitaço, no qual diversos coletivos, que já atuam na distribuição de refeições gratuitas, aderiram à campanha. Muitos ainda receberam apoio de cozinheiros de renome, como Helena Rizzo, Bel Coelho, Checho Gonzales e Paola Carosella, para a preparação das marmitas.

No “Gente é pra brilhar”, com a “benção” de Caetano Veloso (autor da música que inspirou o nome), a adesão tomou um corpo inesperado pelos organizadores. Na lista dos apoiadores entraram 100 coletivos, incluindo a sociedade civil e ONGs, como Greenpeace Brasil, Slow Food Brasil e Gastromotiva. E recebeu um grande volume de doações, a maioria de agricultura familiar, como arroz orgânico do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e legumes e verduras da Rama (Rede Agroecológica de Mulheres Agricultoras). Ao total, foram realizados 76 pontos de Marmitaço em várias cidades do país, com entrega de mais de 27 mil refeições e de 5 toneladas de alimentos às comunidades carentes no fim de semana.

“Foi uma campanha com pouco tempo e tivemos muito resultado. Fizemos um mapeamento pelos coletivos que conhecíamos e fizemos um formulário no nosso site para saber as necessidades dos territórios e equilibramos as doações. Ainda não conseguimos mapear tudo. A ideia do Marmitaço não é inventar a roda, mas fazer a roda girar”, explica Simone.

-
(Marcela Oliveira/Fotografia)

A atuação do coletivo Banquetaço já tem um histórico importante de luta contra ameaças à segurança alimentar. A que mais repercutiu foi em 2017, na capital paulista, quando reuniu dezenas de chefs de cozinha para preparar, em frente ao Theatro Municipal, um verdadeiro banquete aos moradores de rua, preparado com ingredientes orgânicos da agricultura familiar. O protesto era contra a “farinata” – complemento alimentar, chamado por muitos de ração, que seria colocado na merenda escolar, segundo proposta do então prefeito João Dória. No mesmo dia da manifestação, Dória recuou da decisão.

Agora, com o “Gente é pra brilhar”, a ideia não é parar por aí. É o início de uma grande mobilização que pretende se firmar como uma campanha permanente de combate à fome. “Queremos também construir novas políticas públicas e lutar para manter as políticas já instauradas”, revela Simone.

View this post on Instagram

A post shared by Gente é pra Brilhar (@gente.prabrilhar) on

Publicidade

-
(Marcela Oliveira/Fotografia)

Qual é a sua fome?

Uma das articuladoras da campanha, a historiadora Adriana Salay Leme sabe que a fome não se resolve somente com as doações. “É como uma febre por infecção. Você toma um antitérmico, diminui a febre, mas não cura o problema. É importante acabar com a fome, mas não adianta se não curarmos a desigualdade”, compara.

Não é de hoje que Adriana está familiarizada com o tema. Ela tem se dedicado aos estudos sobre os hábitos alimentares brasileiros nos últimos 50 anos, e hoje seu doutorado é focado na história da fome no país e como ela se forma um problema político e estrutural.

Preparo do arroz camponês na Cozinha 9 de Julho pelo grupo Sopão das Manas
Preparo do arroz camponês na Cozinha 9 de Julho pelo grupo Sopão das Manas (Marcela Oliveira/Fotografia)

“A fome era vista como consequência de uma crise, seja climática ou uma guerra. A ligação entre renda e alimentação, como fator gerador de fome, é algo recente”, conta Adriana, que traz como referência o trabalho do médico Josué de Castro (1908-1973), embaixador brasileiro junto à ONU, indicado ao prêmio Nobel da Paz e autor da obra Geografia da Fome (1946).

Além da compreensão teórica, Adriana levou a problemática também para a prática. Ela e o marido Rodrigo Oliveira, chef do restaurante Mocotó, em São Paulo, já idealizavam projetos em prol da comunidade local, na região da Vila Medeiros. Mas a pandemia e o consequente aumento da fome, os levaram para algo mais urgente. “O Rodrigo decidiu fazer marmitas com a comida dos funcionários, com arroz, feijão, uma proteína, vegetais crus e cozidos”, conta. Depois de acionarem a associação do bairro e fazerem levantamento das famílias mais necessitadas, nasceu o projeto Quebrada Alimentada. Eles passaram a doar 200 refeições por dia, com apoio de empresas, entidades e de pessoas físicas, além de usarem recursos próprios. Até agora (meados de outubro), já foram mais de 40 mil marmitas distribuídas. Em paralelo, iniciaram também doação mensal de 220 cestas básicas que incluem, além dos itens tradicionais, produtos orgânicos. “Vimos que o maior público daqui não são de pessoas em situação de rua”, conta Adriana, revelando que a crise tem tirado a renda de muitas famílias e, consequentemente, abrindo espaço para a entrada da fome. “Difícil ver uma família ganhando R$ 1.200 do governo e ter de pagar R$ 800 de aluguel. O que sobra não é suficiente para alimentar a todos.”

-
(Marcela Oliveira/Fotografia)

O agravamento da crise tem como exemplo a Ocupação Jardim Julieta, que surgiu exatamente por conta da pandemia. Bem no entorno da Vila Medeiros, a comunidade com 600 famílias ao menos teve momentos de alegria no fim de semana do Marmitaço: receberam 2.200 pratos de baião-de-dois, 1.100 sanduíches e pudins de doce de leite preparados Rodrigo Oliveira com a ajuda dos chefs Edson Leite, da Gastronomia Periférica, e de Paola Carosella, do restaurante Arturito e apresentadora do reality show MasterChef.

A intenção de Rodrigo e Adriana é continuar com as doações do Quebrada Alimentada, mas de olho no futuro. “Vamos gerar ações mais perenes, como montar uma cozinha comunitária ou um refeitório”, avisa a historiadora.

“A fome era vista como consequência de uma crise, seja climática ou uma guerra. A ligação entre renda e alimentação, como fator gerador de fome, é algo recente”

Adriana Salay Leme, historiadora
Continua após a publicidade

E no que se refere ao “Gente é pra brilhar”, Adriana e os coordenadores da campanha estão preparando um documento apontando políticas públicas necessárias para o momento de crise e para uma mudança estrutural efetiva para o combate à fome. “Quem é responsável por alimentar a população é o Estado”, relembra.

Publicidade

A nutricionista Neide Rigo e os cozinheiros Checho Gonzales e Calina Bispo, do Sopão das Manas
A nutricionista Neide Rigo e os cozinheiros Checho Gonzales e Calina Bispo, do Sopão das Manas (Marcela Oliveira/Fotografia)

Merenda escolar e agricultura familiar

Uma das questões mais polêmicas que envolveu a alimentação durante a pandemia foi o fechamento das escolas estaduais e municipais. A justificativa é simples: boa parte dos alunos depende da merenda escolar para garantir sua segurança alimentar e nutricional.

A solução encontrada pela prefeitura e pelo governo do estado de São Paulo foi fornecer um auxílio financeiro às famílias dos estudantes. Na primeira, foi entregue o Cartão Merenda, com valor depositado de acordo com a etapa de ensino do aluno: R$ 101 para creche, R$ 63 para EMEI e R$ 55 para EMEF. Segundo a Secretaria de Educação da Prefeitura, a distribuição começou pelas crianças mais vulneráveis, chegou atualmente a 700 mil alunos e ainda serão emitidos mais 310 mil cartões, universalizando a entrega a todos os estudantes da rede municipal, que só podem usar o valor em compra de gêneros alimentícios.

Marmitas preparadas para receber o arroz camponês, nas versões com linguiça e vegana
Marmitas preparadas para receber o arroz camponês, nas versões com linguiça e vegana (Marcela Oliveira/Fotografia)

Já no ensino estadual, o programa Merenda em Casa tem um valor único mensal para todos os estudantes: R$ 55. Outra diferença é que o repasse priorizou as famílias dentro do Cadastro Único Federal e do Bolsa Família, ou seja, em estado de pobreza ou extrema pobreza. Isso equivale a um quarto dos 3,5 milhões de estudantes da rede estadual, que possui 5,1 mil escolas.

O auxílio do Merenda em Casa é feito via aplicativo do PicPay e o dinheiro pode ser sacado ou transferido. “Optamos pela versão digital pela agilidade. Em duas semanas [após o fechamento das escolas], as famílias já estavam recebendo o valor”, justifica Cecilia Cruz, da coordenação de gestão da Secretaria de Educação do Governo de São Paulo.

Questionada sobre o pagamento depender de celular e conexão com internet, principalmente por pessoas em estado de pobreza, Cecilia disse que a maioria dos domicílios em São Paulo possuem um aparelho e as escolas disponibilizaram internet a quem necessitava, além de ajudar no uso do aplicativo.

Continua após a publicidade

Neide Rigo foi uma das voluntárias na ação realizada na Cozinha Ocupação 9 de Julho
Neide Rigo foi uma das voluntárias na ação realizada na Cozinha Ocupação 9 de Julho (Marcela Oliveira/Fotografia)

Se por um lado a auxílio financeiro dos governos parece “compensar” a merenda dos alunos, de outro há um prejuízo enorme: dos fornecedores de alimentos das escolas. “Todos os contratos foram suspensos, pois são atrelados ao serviço prestado. É uma questão jurídica”, justifica Cecilia.

Nesta conta, quem sai perdendo bastante é o pequeno agricultor, já que, segundo a lei federal, ao menos 30% dos recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) repassados aos estados e municípios devem ser adquiridos diretamente da agricultura familiar. E quem já estava com a produção pronta para entregar às escolas, ficou de mãos atadas. É o caso do cultivo de bananas por famílias agricultoras do Vale do Ribeira, vendida em enorme volume tanto para o Estado quanto para a prefeitura de São Paulo. “O PNAE é uma importante política pública de benefícios bilaterais: de um lado a agricultura familiar, e de outro a população consumidora, ambos sendo beneficiados por uma adequada aplicação do recurso público”, diz Simone Gomes, do Banquetaço. É para todo mundo sair ganhando.

Continua após a publicidade

Confira abaixo relatos sobre os dois dias de Marmitaço:

Publicidade

-
(Marcela Oliveira/Fotografia)

Sábado – 17/10

Agência Popular Solano Trindade e Helena Rizzo
Uma casa grafitada, colorida, contrastava com o acinzentado do céu e das ruas do Campo Limpo no último sábado (17). Atravessando o portão, a alegria era confirmada. A sede da Agência Popular Solano Trindade estava tomada de voluntários e panelas fumegantes para a preparação do Banquetaço da campanha “Gente é pra brilhar”.

Para a cozinha, orquestrada por Cleunice Maria de Paula, a tia Nice, do restaurante Organicamente Rango, veio a ajuda de peso de Helena Rizzo, que abraçou a causa. “É um prazer ajudar com o mínimo. Todo mundo deveria fazer um pouco”, diz a chef do premiado restaurante Maní, que, por dois meses da pandemia, cozinhou marmitas para pessoas em situação de rua em parceria com o Instituto Ibia e os Anjos das Ruas.

Para o Banquetaço, a pedida foi a galinhada – “Como é uma comida para muitas pessoas, é bom pensar em prato único”, explicou Helena – e os ingredientes carregavam não só sabor e aroma, mas também generosidade. Todos foram doados: a ave da empresa Korin, o pequi do Origens Brasil, em parceria com o ISA (Instituto Socioambiental), o arroz orgânico do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e a ora-pro-nóbis foi colhida diretamente da horta do Organicamente Rango, que cultiva ervas e hortaliças, na sua maioria pancs (plantas alimentícias não convencionais).

-
(Marcela Oliveira/Fotografia)

Para quem não conhece, a Solano Trindade é um hub de empreendedores da região, que oferece tanto espaço para trabalho, como um coworking, quanto aulas de capacitação. Ilha de edição, rádio web, um empório – o primeiro de comida orgânica da periferia paulistana – e o restaurante comandado por tia Nice completam a estrutura da agência.

“Queremos reforçar a periferia como um celeiro da biodiversidade e da segurança alimentar”, explica Thiago Vinicius, um dos fundadores da Agência e filho de Cleonice. O uso de PANCs, por exemplo, é algo corriqueiro para quem vive na região. “Nunca tínhamos dinheiro para comer carne. Uma ora-pro-nóbis é como comer um bife”, conta Vinicius, referindo-se ao alto teor proteico da planta. “O saber vem da periferia e depois é gourmetizado”. No cardápio executado por sua mãe no Organicamente Rango a diversidade é colocada em prática: bobó de shimeji, charutinho de capuchinha com ora-pro-nóbis, pastel de pancs e feijoadas tradicional e vegetariana estão entre as opções, que custam a partir de R$ 20 (incluindo salada).

Mesmo com o restaurante fechado por conta da pandemia (a reabertura está marcada para o dia 7 de novembro), a cozinha não parou. Desde 19 de março, já foram feitas 20.300 marmitas para famílias com vulnerabilidade social e pessoas em situação de rua na zona sul e centro da cidade. Os recursos vieram de doações (tem uma vaquinha em benfeitoria.com/solanotrindade) e da parceria com a Cufa (Central Única das Favelas). Ainda vale mencionar as 10 mil cestas básicas ofertadas, que beneficiaram 40 mil pessoas. “Todos os itens foram comprados no comércio do bairro, para fortalecer a economia local. Só de legumes, verduras e frutas gastamos R$ 50 mil comprando da agricultura familiar”, revela Vinicius.

-
(Fellipe Abreu/Divulgação)

“O problema da fome não é a falta de alimento. É má distribuição. Esse é o momento de integração, de fazer pontes. Isso a gente consegue com união, organização, logística”

Helena Rizzo, chef

Uma das comunidades assistidas pela Solano Trindade está bem próxima à sede da agência: a Campo da Regional, com cerca de 200 famílias. E foi no campo de futebol que integra a comunidade que as 170 marmitas com a galinhada de Helena e Tia Nice foram servidas. Os moradores também receberam suco de cajá e doce de abóbora.

“O problema da fome não é a falta de alimento. É má distribuição. Esse é o momento de integração, de fazer pontes. Isso a gente consegue com união, organização, logística”, opina Helena. “Precisamos olhar para um ecossistema mais saudável, com foca na biodiversidade e com uma distribuição que funcione”, completa a chef.

Enquanto isso não acontece, a ajuda ao próximo sempre será necessária. Mesmo retomando suas atividades, a Solano Trindade não deixará as ações comunitárias. “Queremos manter até o fim do ano que vem. A pandemia deixou grandes sequelas na periferia. É muito triste”, diz Vinicius.

Publicidade

Cozinheiras do Sopão das Manas: o grupo acaba de fechar parceria com a cozinha da Ocupação 9 de Julho e vai oferecer oficinas de capacitação para a população local
Cozinheiras do Sopão das Manas: o grupo acaba de fechar parceria com a cozinha da Ocupação 9 de Julho e vai oferecer oficinas de capacitação para a população local (Marcela Oliveira/Fotografia)

Domingo – 18/10

Sopão das Manas, Cozinha Ocupação 9 de Julho, Neide Rigo e Checho Gonzales
Organização. Esse foi substantivo mais notado em toda a ação do coletivo Sopão das Manas com a Cozinha Ocupação 9 de Julho para o Marmitaço da campanha “Gente é pra brilhar”.

Logo na porta da Ocupação, na Bela Vista (região central de São Paulo), a zeladora Irene pedia para todos não-moradores anotarem seus dados antes de entrar. “Aqui é como um prédio qualquer, todos os apartamentos estão bem bonitinhos. Só a fachada que ainda precisamos arrumar”, diz ela sobre o edifício que pertencia ao INSS e, depois de anos abandonado, foi ocupado por cerca de 150 famílias do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC).

Depois de autorizada a entrada, os voluntários rumaram à cozinha da Ocupação, no térreo do prédio, onde mais de 600 marmitas seriam preparadas para a campanha.

Uma das 600 marmitas distribuídas para comunidades carentes durante o Marmitaço
Uma das 600 marmitas distribuídas para comunidades carentes durante o Marmitaço (Marcela Oliveira/Fotografia)

Antes da pandemia, a Cozinha Ocupação 9 de Julho funcionava aberto ao público, com venda de refeições (preço mais em conta para os moradores) e atividades culturais. Agora, através da campanha Lute Como Quem Cuida, recebe chefs convidados para ocupar os fogões e venderem quentinhas – a cada prato vendido, a R$ 30, dois são doados para pessoas em situação de rua.

No domingo do Marmitaço foi a vez das Manas assumirem o comando das panelas, de onde saíram duas versões do arroz camponês: com linguiça e vegana (com pupunha). Os pratos também foram vendidos no mesmo esquema de doação, com retirada na Ocupação ou delivery pelos Entregadores Antifascistas. Mas a maior parte da produção naquele dia estava direcionada para diferentes comunidades apoiadas pela campanha.

“Vimos a urgência em ajudar pessoas em situação de fome, não aparadas pelo poder público”, diz Katia Lyra, uma das Manas. Iniciado em maio, quando se agravava a situação da pandemia, o grupo de nove cozinheiras (além de Katia, Tatiana Lobão, Lais Duo, Amanda Vasconcelos, Leia Carvalho, Ariana Lenti, Camila Moura, Leticia Brito e Lira Yuri) reuniu suas expertises para preparar e doar sopas a pessoas carentes – prato mais adequado para combater o frio paulistano.

-
(Marcela Oliveira/Fotografia)

“Vimos a urgência em ajudar pessoas em situação de fome, não amparadas pelo poder público”

Katia Lyra, Sopão das Manas

Com o passar dos meses, as Manas cresceram – hoje são cerca de 60 voluntários – e o cardápio mudou, para acompanhar a estação. A cada semana, uma mana define a receita e o grupo retira os ingredientes no estoque central, onde se concentram os alimentos doados e adquiridos a partir de vaquinhas e rifas, e prepara as refeições em casa. No total, 500 quentinhas são oferecidas todas terças-feiras, acompanhadas de pão e bolo.

Entrega das marmitas na comunidade Diogo Pires, em São Paulo
Entrega das marmitas na comunidade Diogo Pires, em São Paulo (Marcela Oliveira/Fotografia)

Para as marmitas do “Gente é pra brilhar”, os alimentos vieram de diferentes pontos: arroz orgânico do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e legumes da Rama (Rede Agroecológica de Mulheres Agricultoras), cultivados por comunidades quilombolas do Vale do Ribeira (SP). Na cozinha, além da equipe da Ocupação, as Manas tiveram auxílio de dois importantes nomes: a nutricionista Neide Rigo e o chef Checho Gonzales. “É admirável o trabalho delas. Eu queria estar presente neste momento simbólico. Nem que fosse colocar uma pitada de sal”, diz Neide, que divulgou bastante a campanha em seu Instagram (com mais de 142 mil seguidores) e realiza diversas ações solidárias. Uma recente foi a troca de seu levain (fermento natural) por alimentos, que foram doados exatamente para o Sopão das Manas, em um total de 100 kg arrecadados.

Continua após a publicidade

-
(Marcela Oliveira/Fotografia)

“É admirável o trabalho delas. Eu queria estar presente neste momento simbólico. Nem que fosse colocar uma pitada de sal”

Neide Rigo, nutricionista

Gonzales, por sua vez, já se considera uma Mana. “Estou tentando há 5 meses ser aprovado por elas! São difíceis (risos)!” Depois de conhecer o grupo, em maio, o chef do restaurante Mescla pediu para participar e cuidar da logística e distribuição, o que tem feito semanalmente com sua Kombi. E não deixaria de participar da campanha Gente é pra brilhar. “É muito bom para chamar atenção, mas não podemos ficar só em uma ação, temos que dar continuidade”, opina Gonzales, que dá como exemplo a própria Cozinha Ocupação 9 de Julho, que há 3 anos desenvolve um trabalho voltado à comunidade.

Depois muito suor e movimentação orquestrada na cozinha, as mais de 600 marmitas foram montadas e distribuídas para as comunidades de Heliópolis, Guian Corruíras (no Jabaquara) e Diogo Pires e Nova Jaguaré (em Jaguaré), e encaminhadas para escola de samba Vai-Vai e movimento Pegada Solidária, que entregaram para moradores em situação de rua do centro, Bela Vista e região da avenida Paulista.

Continua após a publicidade

-
(Marcela Oliveira/Fotografia)

“Estou tentando há 5 meses ser aprovado por elas! São difíceis (risos)!”

Checho Gonzales, chef
Além da marmita, moradores da Diogo Pires receberam máscaras
Além da marmita, moradores da Diogo Pires receberam máscaras (Marcela Oliveira/Fotografia)

No caso da comunidade Diogo Pires, a distribuição de 200 refeições foi feita pessoalmente por Gonzales e parte das Manas. Com mais 780 famílias e cerca de 50 anos, a comunidade já sofreu cinco grandes incêndios. O último foi o que aproximou as Manas de Miranes Cavalcante da Silva e Vaneza Amorim, da Associação Viva Diogo. “Logo que soubemos do ocorrido, decidimos trazer comida à comunidade”, conta Katia Lyra. Foi o início de um laço que permanece forte até hoje. “Queremos legalizar a estrutura, ter dignidade de moradia, para que não tenha mais tragédia”, pede Mira, que lamenta a ausência de ações públicas mais efetivas o bem da sua comunidade.

Continua após a publicidade

-
(Marcela Oliveira/Fotografia)

____

As imagens que você viu nessa reportagem foram feitas por Marcela Oliveira. Confira mais de seu trabalho aqui.

Publicidade

mais de
envolvimento
Bianca Santana relança seu best-seller “Quando me descobri negra” mirando um novo momento de consciência racial no Brasil
Organizando um livro sobre branquitude, Lia Vainer alerta sobre as relações entre a supremacia branca e o estágio tardio do capitalismo
gabriela-rassy03

O MST é pop

Por
Depois de cinco anos proibida em São Paulo, a Feira da Reforma Agrária do MST está de volta. Fomos até lá conversar com lideranças e comer muito bem
3-2-hpv

Elástica explica: o que é HPV?

Por
Saiba como é o diagnóstico, a prevenção e entenda a importância da vacinação para conter o vírus
Alexia Brito fala sobre sua família, rotina e amadurecimento em um papo sincero e divertido