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Desistir: a hora e a vez

Pode soar como atitude irracional, mas, muitas vezes, deixar de lado toda a construção de uma vida é a melhor chave para se reinventar

por Laís Duarte Atualizado em 3 nov 2020, 11h21 - Publicado em 1 nov 2020 23h51
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(Clube Lambada/Ilustração)

e repente, Wílson Mano chutou e marcou 1 a 0 sobre o São Paulo em 13 de dezembro de 1990. Não era só um gol. Era a abertura para o primeiro título do Campeonato Brasileiro da história do Corinthians. Aquela também era a noite da formatura de Débora Portela na 8ª série e ela abriu mão da festa por não ter um walkman para ouvir a partida, naqueles tempos em que a internet não reinava absoluta nas telas dos celulares. Ela ficou em casa, ouvidos grudados no rádio e na voz do narrador José Silvério, no quarto, e o pai, responsável pela “corintianice” toda, no outro cômodo, como mandava a tradição familiar.

Quando o gol aconteceu, tão grande quanto a festa no estádio, Débora foi para a cozinha da casa. Pai e filha se encontraram, se abraçaram, e voltaram aos seus postos para torcer contra o rival. Um riso frouxo e fácil tomou conta dela. No bairro Rio Bonito, zona sul da capital paulista, toda a desistência fez sentido. O Corinthians virou bússola para o caminho da vida da adolescente, elo inseparável que a unia a seu pai. Era ela, a mais velha das 3 filhas, que o acompanhava aos estádios, que escutava as transmissões dos jogos do Timão.

Foi para trabalhar no Corinthians que ela ousou sonhar ser a primeira pessoa da família a ter um diploma universitário. “Queria uma profissão que me deixasse perto do Corinthians. Pensei primeiro em fazer direito, para ser advogada do time. Depois, psicologia, para ser psicóloga do Corinthians. O trabalho era uma forma de eu ficar perto do clube”, conta. Mas foi o gosto pelas notícias (também sobre o Corinthians) que chegavam pelo rádio a guiou ao jornalismo.

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A partir daí, era como se a sorte andasse com ela, de mãos dadas. Ela quis estagiar na Rádio Jovem Pan. Conseguiu. Quis conhecer os jogadores, trabalhar com noticiário esportivo. Conseguiu. Depois, contratada como editora de esportes da TV Bandeirantes, acompanhava o dia a dia do timão, parceira de trabalho de um dos grandes ídolos, o atacante Neto.

Débora foi além, em pouco tempo, marcando um gol atrás do outro. Indicada para uma vaga na TV Cultura, teve a possibilidade de mergulhar na história do time, tendo nas mãos os arquivos do programa Grandes Momentos do Esporte. O jornalismo esportivo deu a ela a chance de morar sozinha, de ajudar os pais, irmãs e sobrinhas, de fazer do sonho realidade. “A sorte sempre me estapeou. As portas se abriam para mim. Fiz amigos, construí laços. Eu fui muito, muito feliz fazendo o Grandes Momentos do Esporte. Fazia todo sentido para mim”, reflete. Entre uma entrevista e outra conheceu Vladimir, Rivelino, Marcelinho Carioca. O pai se orgulhava da filha que estava lado a lado com os maiores jogadores da história do Timão.

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(Arquivo/Reprodução)

“A sorte sempre me estapeou. As portas se abriam para mim. Fiz amigos, construí laços. Eu fui muito, muito feliz fazendo o Grandes Momentos do Esporte. Fazia todo sentido para mim”

Débora Portela

Em 2009, Débora embarcou de mala e cuia para a China. Assumiu vaga no departamento de português da Rádio Internacional da China, uma espécie de BBC da Ásia, transmitindo em 60 idiomas. O salário era bom, as descobertas se descortinavam a cada esquina, a oportunidade de desbravar os mistérios do Oriente se fez real. E em meio a tantas alegrias ela percebeu que o jornalismo não a seduzia mais. O Corinthians a levou às notícias. O fato sem o time não tinha mais porquê.

Ao voltar ao Brasil em 2012, Débora estava casada, havia viajado muito e visto que o mundo era bem maior do que as quatro linhas do gramado no Parque São Jorge.

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Cavando brechas no mercado de trabalho nacional, Débora até procurou outros empregos, mas as redações de televisão se mostravam um ambiente de estresse e angústia para ela. Sofreu, se questionou, colocou a vida na balança, fez terapia, recalculou os gastos. Refletiu e desistiu. Desistiu da carreira que construiu durante 16 anos. Deixou para trás, abandonou.

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(Domitila de Paulo/Ilustração)

Começar de novo

Desistir vem do latim. Verbo amplo, repleto de possibilidades por natureza, transitivo e intransitivo. Pode significar afastar-se; deixar de; renunciar; deter; suspender, abandonar, abster-se. Não é fechado em si mesmo. Pode ser fim, pode ser começo. Pode ser os dois.

Para Patrícia Santos, foi os dois. Formada em Pedagogia, com MBA em Administração e uma empresa de Recursos Humanos em franca ascensão, ela conheceu o amor da sua vida na militância jovem. A luta pelos direitos negros uniu um casal sonhador. Ela era a mulher bem-sucedida, guerreira, que cresceu pertinho de Heliópolis, a maior comunidade de São Paulo. Ele, o líder religioso respeitado, a voz de uma legião. Os frutos dessa união vieram logo: dois meninos muito amados e o sonho de ter uma menina.

Mas, conforme os filhos cresciam, crescia também a insatisfação no casamento, a violência psicológica. “Ele dizia: ‘me dá seu dinheiro’, ‘você não tem controle’. Sempre me diminuía e menosprezava. Me pressionava para termos uma menina. Eu estava me sentindo sufocada, numa prisão. Mas, ao mesmo tempo, eu tinha medo de ficar sozinha. O homem negro tem escolha. A mulher negra, não. Eu cresci estudando causas raciais. A solidão da mulher negra virou regra na sociedade. Mulheres negras são mais solitárias porque, muitas vezes, são mães solteiras, divorciadas ou nunca são assumidas pelos amantes”, conta.

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(Arquivo/Reprodução)

“Grávida eu não podia separar, né?! Então, comecei a não me calar. Falava, discutia. Fomos nos afastando”

Patrícia Santos

No décimo ano de casamento, Patrícia quis se separar. Mas se viu grávida de novo. “Grávida eu não podia separar, né?! Então, comecei a não me calar. Falava, discutia. Fomos nos afastando”, relembra. E assim ela passou a questionar. Por que ela precisava entregar o dinheiro ao marido? Por que, sendo tão admirada fora de casa, era menosprezada lá dentro? Por que precisava silenciar a própria voz e as próprias vontades? Brigavam em casa, sorriam na igreja. “Eu estava num relacionamento abusivo e não sabia. As pessoas diziam ‘que família linda’, endeusavam ele, não acreditavam em mim. Ele era um líder religioso reconhecido e acreditava que Deus não perdoa o divórcio”, conta ela.

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Em 2015, ele ficou desempregado. Ela se viu mãe de três filhos e grávida, enfim, de uma menina. Nesse momento, ela percebeu que gestava também a vontade de recomeçar sozinha. Nasceu a tão sonhada menina na mesma época em que morreu sua relação de 16 anos, quando ela descobriu uma traição. Patrícia desistiu do casamento. “Ouvi muito `você vai deixar esse homem`? ’Não acredito”’, lembra.

Ela já havia pedido que ele saísse de casa. Não aconteceu. Então, uma noite, escoltada pelo advogado, Patrícia pegou os 4 filhos, fez as malas, se mudou para um apartamento alugado. “Quando terminei a mudança, todos choravam. Meu filho mais velho tinha 8 anos, a mais nova, 1. Eu disse pra eles que se ficássemos juntos seríamos mais fortes. E foi assim. Tirei deles minha força”.

Ela adoraria que existissem pílulas para vencer o medo de se arrepender, de não conseguir cuidar dos filhos, da solidão. Mas o remédio mesmo foi a força que já morava dentro dela, e outra, descoberta no candomblé. “Os búzios mostraram que eu tinha uma vida de prosperidade pela frente”.

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(Domitila de Paulo/Ilustração)

A necessidade de deixar passar

Escolher o caminho da desistência é um processo. Uma rápida busca pelo verbo no Google mostra mais de 33 milhões de resultados. Ora acompanhado da palavra ‘nunca’, ora em oposição à persistência, ora estampado nas cartas suicidas de celebridades, ou em conselhos sobre a hora certa de dizer adeus, de esquecer o (a) ex, de recomeçar. Para a psicóloga Lígia Civile, até que a decisão seja tomada, há muita dor, seja a crise pessoal, amorosa ou profissional. “Quando o conflito se dá na carreira, há pessoas em ambientes tão tóxicos que desenvolvem a síndrome de burnout. Se já trabalham na empresa há muitos anos, precisam ser afastadas do trabalho por problemas de saúde mental, e mesmo assim têm medo de sair”, explica.

É preciso enxergar o limite até onde é possível tentar. A partir dali, processar a desistência e viver o luto que vem depois. “Desistir não causa alívio, necessariamente. Depende da personalidade de cada um. Depende de como a pessoa se estruturou e da rede de apoio que ela tem para cada desistência”, conta Ligia.

E quando a vida depende da desistência? Quem enfrenta uma doença incurável, às vezes, precisa parar de lutar. O mais corajoso (e mais duro) talvez seja admitir. Mas a doutora Ana Cláudia Lima Quintana Arantes, escritora e médica com especialização em cuidados paliativos, vê que aproximar-se da morte pode dar novo sentido à vida. “Não se trata de desistir da vida. Desistir é se matar. Trata-se de escolher outro caminho. Quando você opta pelo tratamento paliativo, você não escolhe a morte. Você escolhe a qualidade de vida. O paciente decide viver em vez de apenas tratar a doença”, argumenta ela.

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(Arquivo/Reprodução)

“Desistir não causa alívio, necessariamente. Depende da personalidade de cada um. Depende de como a pessoa se estruturou e da rede de apoio que ela tem para cada desistência”

Lígia Civile, psicóloga

Acumulando anos de experiência suficientes para entender que cuidar é mais do que curar, Ana Cláudia entendeu que o sofrimento abrevia a vida. A dor não controlada altera o sistema cardiovascular, a pressão, o funcionamento do corpo. “O nível de cortisol e adrenalina muito elevados constantemente por causa do medo de morrer corroem o organismo. O paciente acaba morrendo mais rápido. Quando se liberta da pressão da expectativa, a vontade de viver inunda o corpo com bom humor. É libertador. Você não tem que trocar a quimioterapia, vomitar, ficar internado. Você não tem cobrança sobre se manter vivo”, explica. Mesmo assim, ela sabe que tomar a decisão nunca é simples. “É preciso ir limpando o olhar para se aproximar do que é verdade para cada um”, reflete.

Buscar a própria verdade é o fio condutor. A decisão diária da médica é continuar estudando para ajudar quem precisa viver até a hora de partir. Ligia também, e como cada paciente, carrega o peso das próprias desistências. A maior delas foi abandonar o trabalho com adolescentes em conflito com a lei e vítimas de violência pelo SUS (Sistema Único de Saúde). “Eu gostava muito desse trabalho. Fazia muito sentido para mim, mas chegou ao ponto de afetar a minha saúde. Meu corpo começou a demonstrar sinais de esgotamento, não tanto pelos pacientes em situação de vulnerabilidade, mas sim por esbarrar em gestões que, muitas vezes, não compreendiam as necessidades dos profissionais. Tive insônia , exaustão física até nos dias de folga, desesperança. A partir desses sinais comecei a entender meus limites”, analisa.

Colocar um ponto final em uma história, por mais doloroso que seja, é abrir espaço para que outra recomece. “Toda vez que estamos abertos para enxergar outros horizontes e desenvolver outros papéis, nos redescobrimos. Há mais sobre nós mesmos que não conhecíamos”, diz Ligia.

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(Domitila de Paulo/Ilustração)

E, no fim…

Patrícia descobriu muito sobre ela mesma. Descobriu as delícias de vestir a própria bravura e conquistar o que sonhou em São Paulo. Criou e fortaleceu a Empregue Afro, uma consultoria em recursos humanos focada em diversidade étnico-racial. Hoje, ganha a vida celebrando as conquistas de tantos outros, profissionais negros guiados por ela no mercado de trabalho. “Ao desistir da relação, insisti em acreditar em mim”, celebra.

Débora começou, também na capital paulista, a trilhar outro caminho. Com a tranquilidade de uma reserva financeira, pode estudar assuntos que gosta: vinhos e pães. Especializou-se na Espanha e acaba de ser contratada por uma padaria do Canadá. Dos tempos do jornalismo, sente saudades, mas sem vontade de voltar ao jogo. “A decisão de desistir aos 40 anos foi dolorosa e necessária. Não me arrependo. Hoje, o que me incomoda é como, no Ocidente, as pessoas são definidas pelo que fazem, e não pelo que são. Eu não quero que uma profissão me defina. Não ´sou´ padeira. Agora ´estou´ padeira em qualquer lugar do mundo. O trabalho é útil, mas não dá significado à minha existência. Quem dá, sou eu”, resume.

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As imagens que você viu nessa reportagem foram feitas por Domitila de Paulo. Confira mais de seu trabalho aqui

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