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Conversas com a espiritualidade

Em entrevistas exclusivas, Padre Julio Lancelotti, Sidnei Nogueira, Jean Tetsuji e César Kaab falam sobre a sociedade sob a ótica da religião

por Artur Tavares Atualizado em 14 set 2020, 17h32 - Publicado em 14 set 2020 00h11
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(Clube Lambada/Ilustração)

íderes espirituais necessários para nossos tempos. Não há melhor maneira de descrever o trabalho feito pelos quatro entrevistados dessa reportagem. Com uma luta social fundamentada pelo pensamento de Jesus, o Padre Julio Lancelotti conversou conosco sobre política e sociedade; em Embu das Artes, um ativista convertido ao islamismo, César Kaab, falou sobre a percepção que temos dos ensinamentos de Maomé aqui no Ocidente; o Babalorixá Sidnei Nogueira, uma das vozes mais contumazes dessa geração, aborda o colonialismo econômico e moral em que estamos inseridos. Por fim, o Reverendo Jean Tetsuji fala sobre o ser feminino e a comunidade LGBT dentro do budismo. Confira:

» LEIA MAIS: A caridade da maneira que praticamos está correta sob os olhos das religiões?

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(Gui Christ/Fotografia)

Padre Julio Lancelotti

Como o catolicismo deveria atuar frente as desigualdades sociais que enfrentamos hoje?
São Lucas, que é o evangelista da misericórdia, diz que todo poder e toda a riqueza são do Diabo. Lucas é o evangelista mais duro na crítica ao poder e à riqueza. Em seu Evangelho, o demônio diz ‘todo poder me foi dado’. Então, o Diabo diz a Jesus, ‘se você me adorar, tudo isso será teu, porque é meu’. É uma crítica contundente de Lucas à riqueza. O dízimo, no judaísmo, não era sobre tudo. Era uma forma de controle da produção, mas apenas de algumas coisas. Jesus critica isso, porque pagava dízimo também do cominho e da hortelã.

A Igreja está muito distante dos seus ensinamentos fundamentais?
O que Jesus sente pelo povo é compaixão. Compaixão é um sentimento de Deus, que é negado pela humanidade. Os governantes negam, não têm compaixão pelo povo. Não se importam que os índios e os quilombolas estão morrendo. Não se importam que os LGBTQI+ estão sendo assassinados. Jesus manifesta um Deus compassivo, que ama essas pessoas, não as rejeita, nem fica moralizando em cima delas. E ensina a partilha. Se tem necessitados, é preciso que se partilhe. Aí vão dizer que isso é comunismo. Isso não é comunismo, é cristianismo.

“Compaixão é um sentimento de Deus, que é negado pela humanidade. Os governantes negam, não têm compaixão pelo povo. Não se importam que os índios e os quilombolas estão morrendo. Não se importam que os LGBTQI+ estão sendo assassinados”

Julio Lancelotti

Quais são as necessidades fundamentais que devemos atender hoje?
No mundo de hoje você tem que ter ação imediata frente ao sofrimento e à fome. Como dizia o Betinho [o sociólogo Herbert José de Sousa], ‘quem tem fome, tem pressa’. Não posso dizer para o esfomeado esperar a revolução, para depois ele comer. Até a revolução chegar, ele morre. Você tem que pressionar e lutar. O que esse governo fez quando assumiu? Acabou com o CONSEA, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. A sociedade vai criando, dentro do mundo capitalista, instrumentos de atenuar as diferenças sociais. Estamos em um governo agora que quer eliminar todo tipo de controle. O Bolsa Família era uma forma de girar a economia sem mudar a estrutura. No contexto histórico, hoje não conseguimos mudar as estruturas, porque a mudança é longa. Mas é nosso horizonte, porque a nossa luta é histórica.

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A mudança vai chegar logo?
Estou velho, não vou ver a mudança. E também não esperava ver esse neofascismo que estamos vendo agora. É um neofascismo absurdo, que entrou na cabeça do povo. Gosto muito daquela frase da Simone de Beauvoir, ‘os opressores não teriam tanto poder se não tivessem tantos cúmplices entre os oprimidos’. Quem torna os oprimidos cúmplices? A mídia, a escola, a família, a religião. É só ver o que tem de padre defendendo o Bolsonaro.

Gosto muito daquela frase da Simone de Beauvoir, ‘os opressores não teriam tanto poder se não tivessem tantos cúmplices entre os oprimidos’. Quem torna os oprimidos cúmplices? A mídia, a escola, a família, a religião

Julio Lancelotti

O senhor é uma das principais vozes da Igreja em São Paulo, e mesmo assim sofre tantos ataques…
Essa paróquia onde estou é pequena e pobre. Estou nela faz 35 anos por dois motivos. Nenhum padre quer vir pra cá, porque essa paróquia não consegue sustentar um padre que tenha carro. Eu não dirijo. Não conseguiria sustentar um padre que quer tirar férias, viajar. Se eu comprar as minhas roupas em qualquer loja de shopping, essa paróquia não sustenta isso. Só tenho uma funcionária na secretaria. A faxina é feita por voluntários e moradores de rua. Nenhum padre quer vir pra cá. Mas, se perguntar sobre a Nossa Senhora do Brasil, todos querem. Para a São Gabriel, a Santo Ivo, a São José. Aqui, não tem ninguém na lista. E nenhuma paróquia me quer também. Porque dizem que eu sou maloqueiro, comunista.

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(Gui Christ/Fotografia)

César Kaab Abdul

Como é a trajetória da Sumayyah Bint Khayyat?
A mesquita foi fundada em 2012 como mussala, apenas um espaço de oração, porque você não tinha o Salat al-Jummah, que é o sermão das sextas-feiras. Foi em 2015 que passamos a ser uma mesquita, quando iniciamos as orações, os sermões e as atividades em geral. Todas as ações que realizamos desde 2012 têm cunho social. Eu, particularmente, trabalho com ações sociais há mais de 20 anos. Fundei a primeira biblioteca dentro de uma favela no país, a Biblioteca de Mártires Zumaluma, uma referência a Zumbi dos Palmares, Malcolm X, Martin Luther King e Nelson Mandela, isso antes de eu ser muçulmano. A religião só fortaleceu isso que eu praticava, porque antes não tinha a questão espiritual.

Como foi a atuação da mesquita durante o ápice da pandemia?
Estávamos com 16 mulheres e quatro homens ajudando, mas com a reabertura dos comércios e a suposta volta à normalidade, fomos perdendo essa força. Foi interessante, porque nem todos eram muçulmanos. Tinham católicos, pessoas que seguem religiões de matrizes africanas, evangélicos. Foi positivo para a mesquita, porque temos uma igreja enorme da Congregação Cristã do Brasil na frente, com 300 assentos. Logo no início da pandemia eles fecharam as portas, então as pessoas ficaram desconectadas, e viram a mesquita fazendo as ações sociais. Muitas pessoas passaram a conhecer melhor a religião islâmica, sem o viés da mídia, que sempre foca o lado ruim. Existem pessoas ruins em todas as camadas sociais, não é exclusividade de um povo, e muito menos de uma religião.

Houve situações tensas?
Teve um dia bem frio em que uma mulher veio aqui com cinco crianças, e estava uma fila enorme. Fiquei incomodado, falei que ela não precisava trazer os filhos. E ela me disse: ‘você me daria cinco marmitas se eu falasse que tenho cinco bocas para alimentar?’. A partir daí, separamos as filas para mulheres com crianças, idosos e pessoas que moram na rua. Na extensão da caridade, desse sistema político usurpador, a periferia é outra história. Se não nos ajudarmos, o sistema não vai nos ajudar. As únicas coisas que funcionam aqui desse lado da ponte são a sobrevivência e a resistência.

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E como fica quem chegou até vocês durante a pandemia?
Na religião islâmica, tem uma fala que é muito forte, seguida por todo muçulmano. Aquele que Deus encaminhou, não será desencaminhado. E aquele que Deus desencaminhou, não será encaminhado. Isso quer dizer que não há imposição. O islã não é uma religião que se prega. Você não tem que ser muçulmano para ganhar um carro, ficar rico, alcançar qualquer coisa. A nossa conduta sempre pautou as ações da mesquita. Sempre fizemos trabalhos de levar alimentação para pessoas em situação de rua, visitamos orfanatos, hospitais, asilos. Mas, as pessoas estão condicionadas a pensar alguns absurdos. Um dia um cara veio aqui e dizendo que se eu desse algo para ele, ele seguiria a minha religião. Esse condicionamento do toma lá, dá cá, existe, mesmo sem necessidade. Para as centenas de pessoas que vêm aqui, eu nunca entreguei um livro da nossa religião. E, quando nos pedem, eu digo para vir aqui conversar conosco antes. Porque não cabe a mim dizer que a pessoa deve seguir minha religião. Senão, pra que Deus deu o livre arbítrio para os humanos? Não tenho direito de dizer que a pessoa vai para o inferno se não seguir o islã. E errado está o muçulmano que faz isso.

“O islã não é uma religião que se prega. Você não tem que ser muçulmano para ganhar um carro, ficar rico, alcançar qualquer coisa”

César Kaab Abdul

As pessoas ficaram cativadas com as atividades de contribuição?
Vi um aumento da solidariedade durante a pandemia, algo que emocionou todo o pessoal da cozinha. Começávamos às 10h da manhã, e terminávamos só de noite, com a limpeza das panelas. Um dia, um cara veio com um pacotinho com um dois pimentões e três abobrinhas. Ele pegava marmita todos os dias, mas quis deixar comida para colaborar mesmo assim. Muita gente de fora da comunidade doou cestas básicas, tem uma mulher que até hoje está doando. As pessoas, no momento da aflição, se movimentam de verdade. Quem queria doar dinheiro, nós fizemos uma parceria com um mercadinho aqui da comunidade. Pedimos para comprar as cestas básicas lá. O mercado, em retribuição, passava para nós um pouquinho mais. Imagina, eram 20 quilos de carne por dia, 15 quilos de arroz. É essa corrente do bem que funciona mais.

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(Gui Christ/Fotografia)

Babalorixá Sidnei Nogueira

Como você analisa a situação do coronavírus no Brasil hoje?
A lição é do tamanho da falta do aprendizado. É disso que se trata. A lição é do tamanho daquilo que a gente não aprendeu como sociedade. Tenho dito que adoecemos antes culturalmente e socialmente como existência, e a covid-19 é um efeito colateral do modo como a sociedade decidiu viver e lidar com as vidas humanas. Sobretudo no Brasil, que tem sido um verdadeiro show de horrores.

O senhor é uma voz poderosa na luta contra o racismo dentro da espiritualidade…
Há 20 anos, comecei a me desfazer totalmente de qualquer pensamento cristão que havia em mim. Não sou cristão, não gosto dos cristãos. Sou do Candomblé. Não gosto de Jesus Cristo. Fui um dos primeiros babalorixás a falar isso em público. Porque, lamentavelmente, o colonialismo é uma força muito poderosa, e também nos invadiu. As pessoas de terreiro também se consideram cristãos em alguma medida. Porque, no Brasil, todo mundo nasce branco, cristão e heteronormativo. Você tem a força do patriarcado, do cristianismo. As pessoas acreditam que fora da cristandade não há ética, verdade, solidariedade, equilíbrio e harmonia. É mentira. É no cristianismo que não há essas coisas todas. Não vou ficar reverenciando essa gente patologicamente doente e fundamentalista.

“Quem é do candomblé e se diz cristão entra em uma onda de palatalização. Você vai embranquecendo para o branco poder te comprar. De novo o capitalismo. É sempre um movimento de compra e venda”

Sidnei Nogueira

Como o candomblé se encaixa como ator de uma mudança social?
O candomblé é uma cultura mitológica. Não há uma divisão entre mitos e logos, entre a mitologia e a lógica. Eles andam juntos. Institucionalmente, o candomblé é uma religião, mas essa palavra não atende o que somos. Precisamos entender que existe colonização linguística. Portanto, quando denomino outra cultura com a minha língua, a língua não dá conta de explicar o que a cultura é. Então, para fins institucionais somos uma religião, mas não estamos religando nada, não há religare, não tem nada de aceitação do sofrimento para ascensão, nem paraíso, demônios, pecados ou involuções espirituais. Seria até desrespeitoso dizermos que somos cristãos sem praticar a liturgia cristã. Quem é do candomblé e se diz cristão entra em uma onda de palatalização. Você vai embranquecendo para o branco poder te comprar. De novo o capitalismo. É sempre um movimento de compra e venda. Nós precisamos ser consumidos pelos 56,1% de pretos e partos. Porque precisamos ser 56,1% de negros. Se for assim, nós salvamos o Brasil. O grande problema é que o negro que se confunde. O branco sabe quem é. Porque nunca recebeu um olhar racista.

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Qual o papel que os negros têm que assumir hoje para mudar a percepção que têm sobre si mesmos?
Eu tenho hoje alguns privilégios. O candomblé possibilitou isso a um preto, filho de empregada doméstica, de um pai semianalfabeto caminhoneiro de betoneira de concreto. O candomblé do qual faço parte exige muito de nós em termos não só expansão espiritual e da sua própria pretitude, mas muito dessa mobilidade social. Eu não vivo em uma ilha. O candomblé está na cidade, precisa sobreviver nela. Pagamos impostos. Nos relacionamos socialmente. Portanto, sempre foi exigido que mudássemos. A minha mãe sempre dizia que precisávamos aprender a língua dos brancos para sobreviver. Aqui, falamos a língua dos pretos. Mas vocês têm que ser bilíngues, porque nós não vivemos no mundo preto, apenas no terreiro. Qual é meu papel agora? Valorizar o trabalho do outro.
Meu percurso de ativista é o de forjar uma imagem relevante e admirável. Porque preciso que as pessoas olhem para mim e tenham o que eu não tive, literatura negra no meu templo, um professor negro, um juiz negro. É muito difícil viver em uma sociedade em que você acorda, liga em uma televisão, e você não está lá. É desse privilégio branco que falamos, e que as pessoas não entendem. Porque as pessoas querem levar para o lado da classe. Sim, temos problemas de classe no Brasil. Mas, para nós negros, os problemas vão além. É muito doloroso você comprar um livro e a linguagem não ser a sua. Você é bilíngue, mas não está falando a sua língua. Agora, com muita alegria, pela primeira vez na história da academia, vamos ter uma disciplina na Unicamp falando sobre candomblé em nível de pós-graduação, mestrado e doutorado. Já havia cursos de extensão, mas imagina… A Unicamp é extremamente branca e eurocêntrica. Toda a academia lá. Estarei lá não como acadêmico. Isso também sou, mas estarei como babalorixá. Porque, se um padre fosse dar a disciplina, ele estaria como padre. Não é? Então estarei como babalorixá.

“Justiça, em Yorùbá, é òdodo, que é a mesma palavra para verdade, direito e dever. Porque só é possível ter tudo isso nas relações, na coletividade”

Sidnei Nogueira

Em vez de colonizar, é melhor explicar a situação das coisas?
A estratégia… o Brasil é um país muito miserável. Nós somos muito privilegiados, eu e você. Miserável também em termos de expansão de consciência. E adoecidos. É muito fácil produzir medo na miséria. Você tem um movimento colonial de potencialização das inseguranças, dos medos e da violência. Veja esses programas da linha do Datena. Quem precisa disso? A que serve esse tipo de programa? Ele não informa, nem alerta. Ele atua a partir dessa lógica de potencialização do medo. Não são poucas as pessoas levadas por esse tipo de discurso. É um discurso terrível e perigoso, porque produz adoecimento, medo, imobilidade. Você não vai se deslocar nem fisicamente nem socialmente. E aí produz esse discurso pior, de que você pode fazer justiça com as próprias mãos, a história das armas. Você não vai comprar uma arma, porque não tem condições, mas a simples ideia de poder comprar traz alívio em termos psicológicos.

A grande questão é que o Ocidente distorce tudo. Justiça, em Yorùbá, é òdodo, que é a mesma palavra para verdade, direito e dever. Porque só é possível ter tudo isso nas relações, na coletividade. Então, se alguém entrar na sua casa e você atirar para matar, isso não é justiça. Você, mais uma vez, não resolveu o problema social. Você resolveu o seu problema. Então, isso não é justiça. Porque justiça é Xangô, e Xangô é o coletivo. Inclusive, Xangô existe na possibilidade arquetípica de ser o justo. Mas, ele já existia muito antes sem o nome Xangô. Ele toma para si esse grande arquétipo que chamamos de justiça. Isso no sentido de equidade, de forças atuando de maneira igualidade, de uma música harmonicamente tocada. Harmonia melódica. É isso que podemos pensar como justiça. E, a justiça brasileira nunca esteve tão desarmonizada. Quando você mata… vou deixar o bandido me matar? Ele é o criminoso. Você não pode assumir o lugar dele para fazer justiça. Dá o nome correto. ‘Eu matei o criminoso, matei uma vida, o invasor.’ Justiça você não fez.

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(Gui Christ/Fotografia)

Reverendo Jean Tetsuji

Como a palavra de Gautama se espalha pelo Oriente e se mantém tão potente até hoje?
Sidarta Gautama é o príncipe indiano que se torna Buda aos 35 anos. Dali, durante 45 anos, ele passa a proferir o Dharma (a Verdade ou Lei) junto aos discípulos que foram formando o Sangha, a comunidade de monges. Aqui nós vemos as Três Joias do Budismo – o Buda, o Dharma e o Sangha. Depois de sua morte, seus discípulos se sentem um tanto perdidos sem seu Mestre e começam a organizar e categorizar seus discursos (sutras) e códigos monásticos (vinaya). A partir do momento em que sai da Índia, o Budismo começa se expandir para o sudeste asiático, seguindo para a China, Tibete, Japão, Coreia, formando as escolas de pensamento, todas baseadas nas três tradições que conhecemos hoje: a Theravada, no sudeste asiático, a tradição Vajra no Tibet e a Mahayana na China, Japão, Coreia e Vietnã, tudo dentro de uma complexa desenvolvimento histórica tempo.

Na nossa era de tempo e espaço humano, Sidarta Gautama é o quarto Buda para algumas escolas, para outras, é 54º, dependendo da leitura do sutra que a escola usa. Em todo caso, consideramos o mais importante é Shakyamuni se manifestar para pregar o Dharma. Os três anteriores também se manifestaram, mas eles não proferem o Dharma a todos os seres. Passamos, então, a chamar Gautama de Buda Shakyamuni. Na verdade, existe uma morte simbólica de Sidarta se tornando Buda, ele morre no mundo profano e renasce no mundo sagrado. Então, quando falamos de Buda, é Shakyamuni. Se contamos um episódio da época de Sidarta Gautama, eu chamo ele de Sidarta, diferenciando as duas figuras. Fica mais fácil o entendimento.

Sidarta foi apenas um dos tantos budas considerados na história. Apenas homens podem ser budas?
As religiões são impactadas pelo sistema social da época, pela percepção cultural. Isso vale até sobre a questão das mulheres. Durante muitos séculos se sustentou que elas não poderiam ser budas, que precisariam renascer como homens, realizar suas práticas para depois alcançarem o Despertar. Mas, é porque a época via desse jeito. Os Sanghas femininos, as comunidades, ficaram apagados por muitos séculos, mas existiram por um bom tempo. Tem-se notícia de movimentos budistas femininos ressurgindo em vários lugares. Há uma famosa monja tibetana, Jetsunma Tenzin, que escreve muito a respeito do direito das mulheres. A ordem Jodoshin começa praticamente com duas mulheres, a esposa e a filha de Shinran, nosso Mestre fundador, organizando a comunidade budista após sua morte em 1262. O Budismo, assim como outras religiões, sempre foi patriarcal porque Buda era um homem. Partia da premissa de que, se Sidarta era homem, mulher não pode ser Buda de imediato. Mas, a primeira mulher ordenada por ele é sua própria tia, Mahapajapati, por insistência dela e de Ananda, discípulo de Shakyamuni. Ele cria, no entanto, diversos votos para ela seguir no intuito de proteger essa mulher. Mulher, na Índia, era uma pessoa que fazia fofoca, intriga, que devia cuidar da casa, que é fraca, que seduz o homem, uma série de adjetivações que as colocam lá para baixo. Mas, quando Buda cria os códigos monásticos femininos, apesar de serem mais numerosos que os masculinos, é muito mais para proteger essa mulher dentro da sociedade machista, do que dizer que ela não tem condições algumas.

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Sidarta foi apenas um dos tantos budas considerados na história. Apenas homens podem ser budas?
As religiões são impactadas pelo sistema social da época, pela percepção cultural. Isso vale até para falar sobre mulheres. Durante muitos séculos se sustentou que as mulheres não poderiam ser budas, que precisariam renascer como homens, fazer suas práticas, para depois ascenderem. Mas, é porque a época via desse jeito. Os sangas femininos, as comunidades, ficaram apagados por muitos séculos. Temos movimentos em vários lugares do budismo ressurgindo as comunidades femininas. Tem uma monja tibetana, Jetsunma Tenzin, que escreve a respeito das mulheres. A ordem Jodo Shin começa com duas mulheres após a morte do fundador. O budismo sempre foi patriarcal, porque Buda era homem. Partia da premissa de que, se Sidarta era homem, mulher não pode ser Buda. Mas, a primeira mulher ordenada por ele é sua própria tia, Mahapajapati, por insistência dela. Ele cria, no entanto, diversos votos para ela seguir, no intuito de proteger essa mulher. Mulher, na Índia, é uma pessoa que faz fofoca, intriga, que tem que cuidar da casa, que é fraca, que seduz o homem. Uma série de adjetivações que as colocam lá para baixo. Mas, quando Buda cria os códigos monásticos femininos, apesar de serem mais numerosos que os masculinos, é muito mais para proteger essa mulher dentro da sociedade machista, do que dizer que ela não tem condições algumas.

“O budismo sempre foi patriarcal, porque Buda era homem. Partia da premissa de que, se Sidarta era homem, mulher não pode ser Buda. Mas, a primeira mulher ordenada por ele é sua própria tia, Mahapajapati, por insistência dela”

Jean Tetsuji

Você tem um grupo LGBTQI+ dentro do budismo. Como a religião entende as questões de sexo e gênero?
Doutrinariamente falando diferenciamos dos irmãos cristão em que suas comunidades LGBT+ precisam fazer uma releitura da Bíblia para se afirmar dentro da tradição conservadora. A doutrina budista por conteúdo doutrinário não é excludente, não precisamos fazer isso. Todos são acolhidos indistintamente. Não há conceito de pecado, binarismo, criacionista, fertilidade. No caminho do despertar, o gênero masculino ou feminino tanto faz para o Buda. Ele estabelece normas de conduta apenas no conviver dentro da comunidade monástica. E mesmo assim o que se chama de conduta imprópria se refere à geração de sofrimento e não por embasamento moral de pecado. Não determina que o homem precisa procriar com a mulher, por exemplo. Porque também parte do princípio de que, independente da condição humana que você está vivendo, estamos todos no Samsara, no mundo dos sofrimentos. Então, pouco importa ser heterossexual, homossexual ou transsexual, temos que sair desse Samsara rumo ao Nirvana.
No Hinduísmo, encontramos deidades transgêneros, o Budismo também tem algumas deidades transgêneras, que ora se manifestam como homem, ora como mulher, mas não determinando binarismo e sim expressando as qualidades salvíficas como compaixão, sabedoria, força, energia entre outras. O Buda não fala de homossexualidade, mas vemos a transexualidade em um comentário: ‘o monge que trouxer características de mulher, que adentre a comunidade feminina’, e o inverso também. A pessoa que traz essas características, assim é e está bem. Ponto. Não tem indagação. Há quem diga que Tailândia considera popularmente seis sexualidades dentro de sua sociedade, homem e mulher cis, homem e mulher trans, o gay e a lésbica.

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Como essa percepção pode ser levada para outros pensamentos religiosos?
As religiões surgem para dar sentido ao mesmo assunto chamado vida. Participo de muitos eventos inter-religiosos, e sempre é importante colocar esse prólogo. As religiões não têm verdades absolutas, porque se disserem que têm, vamos entrar em guerras religiosas e já vemos isso por uns dois mil anos pelo menos. A religião é uma verdade absoluta enquanto estou inserido nela e transforma a minha vida. A partir daí, o que diz o texto religioso para com a vida? Que o homem e a mulher foram criados à imagem e semelhança de Deus, crescei-vos e multiplicai-vos, por exemplo. Só aí você já excluiu todas as possibilidades da diversidade humana. Mas esses textos precisam ser colocados à luz do seu tempo e cultura e não lidos literalmente, precisam ser interpretados em ampla visão. É o que muitos teólogos progressistas fazem. O problema LGBT+, assim como o assunto mulheres, são problemas do mundo moderno. Você tem a Revolução Feminista nos anos 1960, o Stonewall LGBT+ nos anos 1970. Esses problemas não eram importantes em 1427. A mulher era o que era e ponto final e quem era LGBT+ ia viver sua vida clandestinamente. Como passamos a ter vozes sobretudo no pós-guerra, essas são questões muito mais atuais que do mundo antigo. Cabe a nós relermos os textos e ressignificarmos para nossa era, pois muitos deles não condizem mais com nosso tempo.

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Os retratos que você viu nessa reportagem foram feitas por Gui Christ. Confira mais de seu trabalho aqui

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