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“Tive minha vida interrompida”

Líder do MSTC, a urbanista Carmen Silva está proibida pela Justiça de entrar nas ocupações, mas persiste em sua luta pelo direito básico à moradia digna

por Heloisa Aun 3 ago 2020 01h20
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(Clube Lambada/Ilustração)

o alto de seu apartamento na região central de São Paulo, no qual vive de aluguel dividido com os filhos, Carmen Silva não se sente livre, apesar de poder andar pelas ruas. “Só me sentirei livre quando ler ou ouvir a frase: ‘ela é inocente’. Mas e esse tempo que perdi? Tive a minha vida interrompida”, reflete. Vítima de um processo no ano passado por “extorsão” e “associação criminosa”, baseado em acusações falsas, a líder do Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC) luta incessantemente, desde a década de 1990, por direitos básicos a todos os cidadãos, como a moradia digna. Agora, seus dias são marcados pelo medo de dormir e, por volta das 5h da manhã, ser acordada pela polícia em sua casa, em mais uma tentativa de criminalização dos movimentos sociais. “Eu não sei o que eles armam”, afirma.

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(Gui Christ/Fotografia)

Em 24 de junho de 2019, Carmen estava na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde participava de um evento, quando foi surpreendida por inúmeras ligações de familiares e colegas de movimento. “Mainha, a polícia está aqui”, alertou seu filho Thiago. A ativista, ainda sem saber a gravidade do que estava acontecendo, respondeu: “É normal a polícia entrar em ocupação, fique tranquilo”. Ela não esperava o que viria a ocorrer, mas a situação a fazia recordar cada vez mais da sensação que sentiu em maio de 2018, no dia em que houve o incêndio do Edifício Wilton Paes, no Largo do Paissandu com o qual a urbanista relata nunca ter tido qualquer envolvimento, mas, mesmo assim, se tornou alvo de acusações infundadas. O movimento que lidera, o MSTC, coordena cinco ocupações (José Bonifácio, Casarão, Nove de Julho, Rio Branco e São Francisco) e um empreendimento, o Residencial Cambridge, financiado pelo programa Minha Casa, Minha Vida.

No caso do processo do último ano, a líder do MSTC começou a entender o cenário após um telefonema de Guilherme Boulos, porém, decidiu manter a cabeça fria e cumprir com o que havia se comprometido na UFRJ. Apenas adiantou a passagem de volta para São Paulo, pois acreditava que só teria de prestar depoimento, assim como em outras ocasiões que foi absolvida. Quando caiu na realidade e viu seus filhos presos, uma sensação de revolta e remorso tomou sua mente. A força do coletivo a sustentou, mais uma vez, assim como aconteceu no período em que viveu na rua, nos anos 1990, logo que chegou na capital paulista. “É tão perverso esse processo, baseado em fake news. Foi uma forma de nos neutralizar e calar a boca dos movimentos sociais”, declara. Durante 74 dias, ela viveu clandestina: levava sua mala e se abrigava onde era possível. Passou a sentir, de fato, o que é não ter pátria. “É uma anulação total”, lembra. Parte dessa sensação veio ao fim em outubro, com a concessão de habeas corpus a ela e aos filhos, Preta Ferreira e Sidney Ferreira, que passaram mais de 100 dias presos.

Atualmente, além da luta contra a criminalização dos movimentos de moradia, a ativista tem como foco dar assistência a milhares de famílias que não têm o que comer em meio à crise da pandemia do novo coronavírus, embora, por uma determinação judicial, não possa entrar nas ocupações. “Descobri um mundo invisível, em que pessoas passam fome. Esse momento só vem trazer à tona a necessidade das pautas de políticas públicas efetivas”, diz. Elástica conversou com Carmen Silva sobre sua trajetória, a batalha por moradia digna ao longo das décadas, o futuro das cidades e também sobre liberdade e direitos básicos.

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Através de uma parceria inédita com o Estado, o MSTC conseguiu transformar o Hotel Cambridge em um prédio residencial. O prédio está atualmente em obras (Gui Christ/Fotografia)

Além de líder do MSTC, você é atriz, mulher, mãe, urbanista por essência e ativista. Quem é e como nasceu a Carmen Silva de hoje? Como ela se constituiu e em que momento da sua vida?
Eu confio muito em talentos da humanidade, dos seres humanos. Acho que nós somos passíveis de aprendizado e de aperfeiçoamento. Então, a Carmen Silva, lá atrás na década de 1990, assim como muitas mulheres até hoje, em pleno 2020, estava adormecida pela falta de oportunidades. Me vi sem nenhuma perspectiva e o que me ergueu foi justamente a coletividade, eu não me sentir só. Foi quando entrei no movimento de moradia e percebi que existiam várias outras pessoas que, assim como eu mulher, sozinha, com filhos, sem nenhuma perspectiva e sem esperança , tinham os mesmos problemas ou até piores que os meus. A organização e o coletivo realmente fizeram Carmen Silva renascer ali. Renascer para o coletivo, renascer para a organização. E o aperfeiçoamento vem pelas oportunidades. Para eu chegar hoje a ser uma urbanista é porque havia o que estava adormecido. Eu sempre tive uma perspectiva de que as cidades e as construções existiam, mas nunca me passou pela cabeça que isso era urbanismo, que o urbanismo faz parte da cidadania e é o anseio de viver melhor.

Você citou que a Carmen Silva de hoje nasceu na década de 1990, quando você chegou a São Paulo. Nesse momento, você participou da sua primeira ocupação. Como era a repercussão do movimento e o diálogo com a Prefeitura e o Governo do Estado à época? Acredito que tenha mudado muito de lá para cá…
Naquela época, foi um choque para todos, inclusive para nós, também, pela ousadia. Você imagina: lá atrás nós éramos chamados de vândalos e invasores. E até mesmo a gente não compreendia a diferença entre invadir e ocupar. A mídia era apenas a oficial, não tínhamos tanto acesso à internet como temos hoje com as redes sociais. Mas vivíamos rotulados como vândalos, vagabundos e invasores, aqueles que invadiam as terras dos outros. Essa era a repercussão até a gente se consolidar no local e fazer com que o entorno enxergasse a nossa diferença, que enxergasse que nós só tivemos a ousadia de denunciar a falta efetiva de política pública no âmbito da moradia digna.

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Em todos esses anos como uma liderança dos movimentos de moradia, qual o impacto que você citaria na vida daqueles que tiveram um teto, mesmo que provisório, tanto na questão do direito como da saúde?
O impacto vem em todos os sentidos. Quando fazemos uma ocupação, a primeira coisa que percebemos são as bochechas rosadas das crianças. Elas têm paz, comem as três refeições do dia… A ocupação impacta na condição social, pois a pessoa se empodera e começa a entender que ela também tem direitos e que, acima de tudo, o direito não é assistencialista. E ela também passa a entender que o direito sem ação é morto: se eu ficar aqui dizendo que eu tenho direito, mas não fizer nada para ter a garantia disso, ele não aparece. Para brigar por meus direitos, assegurados como cidadã, eu tenho de ter todos meus documentos em dia. Prova disso é a questão da verba emergencial: 32 milhões de brasileiros invisíveis porque não têm CPF. Mas por que eles não têm o CPF? Todo um setor tem culpa disso. Será que explicaram para essas pessoas que, apesar de elas serem brasileiras, teriam o CPF bloqueado se passassem duas eleições sem votar? Quantos nordestinos moram aqui em São Paulo há 30 anos e não têm um título de eleitor em dia? Será que alguém fez um trabalho com essas pessoas? É isso que os movimentos fazem.

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(Gui Christ/Fotografia)


“Para brigar por meus direitos, assegurados como cidadã, eu tenho de ter todos meus documentos em dia. Prova disso é a questão da verba emergencial: 32 milhões de brasileiros invisíveis porque não têm CPF. Mas por que eles não têm o CPF? Todo um setor tem culpa disso”

Em junho do ano passado, você foi alvo de um processo sob acusações de “extorsão” e “associação criminosa”, precisou ficar foragida, mas teve sua liberdade provisória garantida após cerca de 100 dias. Onde e com quem você vive hoje?
Eu moro com meus filhos, inclusive com minha filha Preta Ferreira, na região central. Morei em ocupação de 1997 a 2003, e, desde então, vivo de aluguel. Não vi mais a necessidade de morar em ocupação porque eu estaria tirando o local de outra pessoa. Como eu tenho condição de pagar aluguel, vivo assim. E a gente divide as despesas aqui, é o mais correto, todos foram ensinados na minha casa assim.

Então, o que você vê pela janela é parecido com o que via quando morava em ocupações…
Isso mesmo.

Como a cidade mudou ao longo dos anos no seu olhar?
A cidade mudou em relação à capacitação das pessoas. Elas, hoje, têm voz e a capacidade de gritar. Acho que as redes sociais e a mídia alternativa fizeram isso para muita gente, mas ainda existe um remanescente de injustiças porque há uma grande desigualdade e ela não diminui – infelizmente, só aumenta. Prova disso é a covid-19: os bairros em que mais morrem pessoas são os periféricos. E essa cidade agora tem uma outra periferia, para além da periferia. Esta é a grande mudança: as “co-periferias” existentes. Uma coisa que eu tenho notado é o seguinte: há uma grande avenida muito bonita, cheia de bancos, lojas e cafés, e por trás dela há comunidades com pessoas ainda vulneráveis. O asfalto é diferente da comunidade. E não são os bairros periféricos, como também os bem próximos da região central.

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Após o processo, você chegou a viver por 74 dias clandestina, de casa em casa. Como foi esse período e qual o apoio recebido?
Foi um processo de anulação total porque você não pode usar a sua identidade, você não pode ter uma vida normal e ser uma cidadã de bem, você vive escondida, e isso é muito ruim. Me trouxe uma reflexão sobre o que é anulação. Bem lá atrás, quando eu era adolescente e ainda estudava, uma professora de história falou que a pior coisa é uma pessoa viver sem pátria, um cidadão sem pátria. E eu dizia: “a senhora está maluca, sou brasileira e moro no Brasil. Como não tenho pátria?”. Após esse período na clandestinidade, passei a sentir o que é não ter pátria. Recebi muito apoio, de muitas pessoas que me acolheram, mas é muito triste a sua vida ser resumida em uma mala com poucas coisas.

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(Gui Christ/Fotografia)

O que você recorda do dia de sua prisão provisória, em que você estava na UFRJ?
Eram 7h da manhã e eu tinha que ir para essa atividade na UFRJ. Me lembro de vários telefonemas, o telefone tocando insistentemente. Primeiro, foi meu filho Thiago: “Mainha, a polícia está aqui”. Aí eu disse: “É normal a polícia entrar em ocupação, fica tranquilo”. Eu não esperava. Quando cheguei na universidade e vi o telefone tocando tanto, me lembrei do dia 1º de maio de 2018. À época, eu estava em Curitiba e pensei: “o que está acontecendo?”. Quando abri, era o incêndio do Edifício Wilton Paes.

Isso me veio à tona naquele momento. Um telefonema que recebi foi de Guilherme Boulos, dizendo: “Fica aí, guerreira. Onde você está? Estou com você”. Aí eu disse: a coisa pegou. Naquele momento, tinha um pensamento: estou aqui para uma atividade, tenho que manter a cabeça fria para fazer o que vim fazer, pois têm muitas pessoas me esperando. Adiantei minha passagem de volta porque pensava que iria só dar meu depoimento, uma vez que já tinha passado por isso mais de uma vez e fui absolvida. Esse processo que é baseado em fake news é uma perversidade, feita para nos neutralizar, para calar a boca dos movimentos sociais. Pegaram as mesmas acusações, as mesmas acusadoras e colocaram com um processo e promotor diferentes para poder dar designação de que é um novo processo. Eu nunca coloquei meus pés no Wilton Paes, nem sei o que se passava ali.


“Após esse período na clandestinidade, passei a sentir o que é não ter pátria. Recebi muito apoio, de muitas pessoas que me acolheram, mas é muito triste a sua vida ser resumida em uma mala com poucas coisas”

Depois que você soube do processo, qual foi seu sentimento como mãe e líder durante mais de 100 dias de prisão arbitrária de seus filhos, Preta e Sidney?
Era um sentimento de revolta e também de remorso com os meus filhos. Eu pensava: “a minha vida de ativismo vai prejudicar a vida dos meus filhos”. E não vi os meus filhos, a última vez foi dia 23 de junho, quando embarquei para o Rio de Janeiro, de madrugada, na [Rodoviária] Tietê. Meu sentimento era de pedir perdão a eles e saber se estavam me culpando pela prisão dos irmãos. Era um sentimento de culpa, acima de tudo.

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Um dos hotéis mais luxuosos de São Paulo nos anos 1950, o Cambridge tornou-se ocupação quando o Centro entrou em processo de degradação (Gui Christ/Fotografia)

E o que eles te falaram neste momento?
Quando tive o primeiro contato com meus filhos, todos disseram assim: “estamos firmes e queremos que você siga, porque sabemos que estamos no caminho certo. Não tem nada para se envergonhar, nem para pedir perdão. É seguir na luta, pois agora entendemos que o ativismo é necessário”. Até os que não eram da luta me falaram isso. Eles aguentaram muito firmes.

Como foi a luta até a concessão de habeas corpus, em outubro do ano passado, levando em conta a arbitrariedade de todo o processo?
Foi muito triste, eu me via anulada. Não podia fazer nada enquanto várias coisas estavam acontecendo. Em alguns momentos, dava vontade de sair e resolver tudo. No entanto, as pessoas que estavam me dando apoio fizeram um levante no Brasil e no mundo, e falaram “não”. E eu te digo uma coisa: eu só não me entreguei em consideração a esse movimento, porque eles disseram “não, não e não”. Os meus filhos também me apoiaram, inclusive os que estavam presos, que diziam: “Não, a gente segura. A gente fica preso”.

Hoje, vocês respondem o processo em liberdade, mas com restrições, como a circulação nas ocupações e se ausentar de casa à noite e aos finais de semana. Como tem sido isso para você, esse sentimento de não poder entrar nesses locais?
Nós estamos tocando uma obra de um retrofit no antigo Cambridge. É preciso estar lá, verificando como está o trabalho, porque a responsabilidade total é da entidade. Se algo der errado na obra, eu ainda sou criminalizada, você entende? Tem outra coisa: e a minha preocupação com a covid-19? Você imagina se uma das ocupações que o MSTC coordena tiver muita gente contaminada? Nós seremos ainda mais criminalizados. É discrepante: eu não posso ir até lá, mas o que acontece é responsabilidade nossa. Com isso, fico muito ansiosa, mas todo esse apoio dos investidores sociais, esse pacto com a Cidade Solidária e outros projetos têm me dado um vigor, uma força para continuar. Essa força vem também das pessoas que estão nas ocupações, que estão cumprindo aquilo que aprenderam conosco.


“Só não me entreguei em consideração ao movimento, porque eles disseram ‘não, não e não’. Os meus filhos também me apoiaram, inclusive os que estavam presos, que diziam: ‘Não, a gente segura. A gente fica preso'”

Quais as próximas etapas nesse processo para sua família, após a liberdade?
Nós estamos aguardando. Preta sempre fala que eles têm que provar que somos culpados, nós não temos que provar nada. As famílias das ocupações e o desenvolvimento delas falam por si. Essas ações que a gente está fazendo com as famílias e o amparo que nós, enquanto movimento, estamos dando a elas neste momento de pandemia falam por si. E outra: o que nos acusam é muito pérfido e nós provamos que não fizemos aquilo.

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Você se sente livre?
Você ter o direito de andar na rua é uma liberdade, mas não completamente. O caso do Queiroz, por exemplo: com crimes provados, não levou nem um mês para ele ser solto. Que justiça é essa? Será que a necropolítica já tem os seus determinantes a quem tirar sua humanidade? Tiraram minha liberdade e fizeram uma acusação falsa. Só vou me sentir livre quando olhar e ler: “Carmen Silva é inocente”. E esse tempo que eu perdi? Estava com viagem marcada para Chicago, ia fazer uma apresentação e ficaria dias lá, na Bienal Internacional de Arquitetura, tinha aulas para dar e outras viagens para o Brasil inteiro. Tive minha vida interrompida. A minha filha Preta estava em estúdio gravando. Ela teve a vida interrompida. O mês de junho, para nós, foi muito triste, mesmo agora, porque a gente acorda sobressaltado. Eu tenho medo. Confesso que durmo morrendo de medo de, às 5h da manhã, a polícia chegar novamente na minha casa. Eu não sei o que eles armam. Não me sinto livre.

Por que você acredita que tentaram e tentam de tudo para criminalizar sua atuação e de outras lideranças, principalmente desde 2018, após o incêndio e desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida, no Paissandu?
Isso é algo premeditado, já vem desde quando foi criada a Lei Antiterrorismo e quando governantes assumem que iriam prender e acabar com os movimentos sociais, como o governador de São Paulo e o próprio presidente do Brasil. Quando o Wilton Paes caiu, eles viram a oportunidade de fazer essa criminalização para exterminar os movimentos sociais. Na época, o presidente era o Temer, e as declarações do próprio Bruno Covas e do governador Márcio França foram que iriam despejar as ocupações. Nisso, o prefeito volta atrás e faz, no próprio dia 16 de maio de 2018, uma resolução que determina que os prédios ocupados passassem por uma vistoria e que o resultado sairia em 15 dias para dar uma resposta à sociedade. Foi um tiro no pé porque as nossas ocupações, dos movimentos organizados, estavam melhores do que muitos prédios por aí particulares, inclusive em nível de organização, equipamentos de segurança, qualidade de vida, etc. Nas ocupações, sempre temos a parte técnica e brigada de incêndio com extintores. É esse o dinheiro que dizem que a gente anda extorquindo. Eu tenho os resultados dessas vistorias, inclusive, um ofício dos órgãos internos das Secretarias de Habitação afirma que a melhor forma para a solução de moradia era o que o MSTC já fazia. 

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(Gui Christ/Fotografia)


“Tive minha vida interrompida. Eu tenho medo. Confesso que durmo morrendo de medo de, às 5h da manhã, a polícia chegar novamente na minha casa. Eu não sei o que eles armam. Não me sinto livre”

Quando vocês decidem por fazer uma ocupação, como é o processo de escolha desses prédios e também para a entrada das famílias que estão mais vulneráveis?
Fazemos essa escolha pelo tempo de abandono do prédio, além daqueles devedores de IPTU. O MSTC nunca procurou edifícios que estivessem em situação boa. O que nós queremos é mostrar para a sociedade que somos zeladores, uma vez que um prédio abandonado é uma questão de saúde pública e traz para o entorno dengue e outras doenças. Se você olhar São Paulo e os prédios abandonados, muitas vezes estão com a aparência bonitinha, mas abandonados há anos, com caixa d’água desativada, o que é um foco do mosquito da dengue. Quando nós entramos, sempre procuramos dar qualidade de vida. Você que mora ao redor, com vários prédios abandonados, tem uma sensação de insegurança. O que fazemos é uma transformação. E as famílias que vão viver nas ocupações são essas que estão na necessidade, pagando aluguéis caríssimos, que não têm moradia de fato ou que estão em áreas de risco.

Mais recentemente, percebi que vocês têm feito muitos eventos culturais. Como o incentivo à cultura fez a visão sobre as ocupações mudar?
Viramos um polo cultural. O MSTC tem essa vanguarda: a visão de atuar em rede, não só com a cultura, mas também com a academia, com as universidades e com o próprio poder público. Sempre trabalhamos assim. E a cultura surgiu de uma visão de que nós temos direito, que não podemos dissociar a moradia da cultura. Isso acontece desde o filme “Era o Hotel Cambridge”, lá em 2014, quando eu fui para a Espanha, no Festival de San Sebastián. Lá, percebi que todas as vitrines são de vidro, então as pessoas que estão dentro conseguem ver as que estão fora, e vice-versa. E nós, apesar de termos a ousadia de abrir as portas de uma ocupação para as famílias morarem, terminávamos nos emparedando. Quando voltei, eu disse: ‘não, vamos abrir as portas das ocupações e trabalhar em fomento junto com a cultura’. Nisso, veio a primeira residência artística e a gente foi consolidando a arte, porque ela está junto conosco e é para todos. Tivemos um aprendizado de trabalhar com os artistas e já fizemos a Ocupação Nove de Julho com todos os segmentos juntos. Ocupamos com artistas, assessoria técnica e mídia para já ter essa composição, além da questão do meio ambiente. A moradia nada mais é que a porta de entrada para outros direitos, nós não podemos estar separados.

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Essa sua percepção teve relação com o fato de você ter atuado como atriz, como no filme “Era o Hotel Cambridge”. Como foi essa experiência de, além de tudo que você é, também ser atriz? Você já tinha imaginado isso em algum momento?
Confesso que fiz teatro lá atrás, na época da escola, como opção de matéria, mas não que pensasse que teria oportunidades nessa área. A arte para nós, no Brasil, sempre foi classificada como de elite, sempre houve esse movimento separatista no país. Hoje, as redes sociais têm a capacidade de deixar que as pessoas tenham essa participação com a arte. Eu nunca me imaginei artista e, quando fiz o “Era o Hotel Cambridge”, percebi: “opa, eu tenho talento”. Me vi em vários festivais, competindo inclusive no prêmio de melhor artista, com oito indicadas. Falei: “nossa! não ganhei, mas estava entre as melhores”. Começo a viajar o Brasil e o mundo falando sobre o artivismo (arte e moradia) e recebo prêmios. Isso é muito gratificante. E o que eu fiz? Tirei meu DRT, né? Aí fui estudar, participei de várias leituras com a Cecilia Boal de teatro e estou aumentando meu currículo: tive participação com Wagner Moura em Marighella, em filmes da Tata Amaral e do Matias Mariani.


“Ocupamos com artistas, assessoria técnica e mídia para já ter essa composição, além da questão do meio ambiente. A moradia nada mais é que a porta de entrada para outros direitos, nós não podemos estar separados”

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Cenas que entrarão para a história: funcionário faz segurança da obra protegido por uma máscara, contra o coronavírus (Gui Christ/Fotografia)

Agora, no período de pandemia, acredito que o perfil dos moradores também passou por uma transformação, principalmente com o desemprego e os fatores econômicos do país. Quem são essas pessoas de agora e o que mudou de lá para cá, desde que você começou no movimento?
Nos últimos anos, O perfil das pessoas mudou muito, porque houve uma desconstrução dessa imagem que tinham de nós, como criminosos e vândalos. Hoje, as famílias que estão conosco são de várias áreas. Nós temos pessoas que trabalham em hospitais, motoristas, seguranças, comerciários, autônomos, entre outras profissões. Antigamente, quando a gente falava em sem-teto, a pessoa imaginava que era alguém que morava na rua. Mas não. Sem-teto é toda pessoa que não tem uma moradia, que não tem uma escritura e que nunca teve uma propriedade. Essa desconstrução favoreceu a entrada de outras pessoas, como as do segmento de cultura. O movimento também acolhe e faz ressocialização daquelas que estavam em situação muito vulnerável. Esse é o nosso papel. Com a pandemia, muitas pessoas tiveram seus trabalhos remotos, outras não puderam exercer sua profissão, pois temos muitos vendedores ambulantes e taxistas que perderam a renda. Como trabalhamos com o coletivo, procuramos não nos desorganizar e, dessa forma, estamos conseguindo manter as famílias, mesmo perdendo renda.

Nesse sentido da pandemia em si, como o movimento se organizou para proteger as famílias, uma vez que há toda uma questão de saúde envolvida?
A primeira providência foi suspender todas as atividades que tivessem aglomerações, como assembleias e reuniões de base. Também pedimos aos moradores que recebessem apenas uma visita por vez e colocamos os dois mediadores de cada andar para fazerem reuniões e falarem sobre isolamento social, além de pararem o trânsito das crianças dos corredores e da brinquedoteca. Sobre a higiene, nós providenciamos álcool em gel, instruímos que todos lavassem as mãos, seguindo as recomendações da OMS. Estimulamos, sobretudo, que ficassem em casa. Na entrada das “ocupas”, nós instalamos pias para quem entrasse e saísse lavar as mãos. 

Depois, sobre a segunda providência, eu fiz uma reunião com a supervisão da UBS República, que nos atende na região central, e pedi que massificasse as vacinações e que não deixasse os agentes de saúde entrar nas ocupações. Por uma determinação judicial naquele processo de criminalização dos movimentos, eu sou proibida de entrar nas ocupações. Ainda mais por isso fiquei muito preocupada como é que as pessoas iriam reagir a esse período de pandemia. 

Dentro da proporção, o primeiro impacto é a fome. Nós sabíamos que a renda das famílias iria diminuir, portanto, criamos o Comitê de Combate à covid-19 na região central. Nele, fizemos um apelo por doações e o MSTC, junto com a Casa Verbo, recebeu um grande suporte do Itaú Social, da BEI Editora e do Insper. Dessa forma, até hoje, estamos todo mês dando às famílias cestas básicas e ainda criamos um projeto que chama “Lute Como Quem Cuida”, que são marmitex, feitas na cozinha da Ocupação Nove de julho. É uma campanha do MST [Movimento Sem Terra] e do MSTC, onde a gente está fornecendo comida às comunidades. Para além das ocupações, nós já distribuímos 45 mil cestas básicas, 45 mil kits de higiene e milhares de máscaras para a cidade como um todo.

Entramos com uma parceria com o Santander, o Itaú e o Bradesco, por meio da qual 54 costureiras, em quatro ateliês, estão trabalhando para confeccionar máscaras elas já fizeram mais de 100 mil máscaras para doação. Além de pensarmos na fome, buscamos parcerias com as instituições financeiras. E também entramos na Cidade Solidária, que é um pacto da Prefeitura de São Paulo com a sociedade civil, no qual recebemos três mil cestas básicas para distribuir nas ocupações e em cortiços da região central. As 12 mil cestas que entregamos mensalmente estamos levando para a zona leste e a zona norte, população de rua, aldeias indígenas e igrejas.

E até agora não tiveram casos de covid-19 em ocupações?
Em uma das ocupações teve um caso de covid-19, mas pedi para a UBS República que estivesse sempre atenta. O que aconteceu: a ocupação virou um polo de vacinação, onde todos do entorno foram se vacinar. Nós saímos de lá com 3.600 vacinas. Essa parceria em rede é muito gratificante e isso é a salvação. O MSTC sempre teve essa rede até com o poder público e nunca ficou distante dele, por mais que ele queira me criminalizar. A gente não só dialoga com ele, mas fazemos parcerias e cumprimos as determinações.


“Antigamente, quando a gente falava em sem-teto, a pessoa imaginava que era alguém que morava na rua. Mas não. Sem-teto é toda pessoa que não tem uma moradia, que não tem uma escritura e que nunca teve uma propriedade”

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Do topo do Cambridge, a vista é de outro prédio histórico paulistano, o Edifício Joelma, que pegou fogo nos anos 1970 (Gui Christ/Fotografia)

Como você, uma mulher que viveu na rua quando chegou em São Paulo e sentiu na pele o que é passar fome, olha para esse momento, em que muita gente voltou a não ter o que comer?
Confesso que, apesar de ter todo esse universo e de estar nas pontas, descobri um mundo invisível, pessoas passando fome e necessidade, entre elas jovens, adultos e idosos. Esse momento só vem trazer à tona a realidade das pautas de política pública. Espero a crise de covid-19 não fique somente na questão da fome, a gente também tem que pensar em políticas públicas efetivas.

O centro de São Paulo passou por um processo de valorização e, agora, virou um dos focos do capital imobiliário. De que forma isso afeta os movimentos de moradia?
Afeta de todas as formas, principalmente porque começa a encarecer a região. Mas há um grande diálogo e propostas dos movimentos com o investidor financeiro e com as grandes construtoras. Uma delas é a PPPop, que é o exemplo das ocupações. É a “Parceria Público Privado Popular”: nesse conceito, mostramos que a gente não quer propriedade, mas sim, ter direito de uso, com seus encargos. Se estamos usando o imóvel, o nosso encargo deve ser a melhoria dele. Nesse caso, o proprietário não perde imóveis. Nós queremos moradia digna e não propriedade. Outra discussão é a autogestão: o próprio investidor sabe que as demandas estão com os movimentos organizados, que as famílias que vão estar nesses imóveis, os futuros moradores, estão conosco. Se não houver esse diálogo entre poder público, movimento popular e investidores será sempre essa degradação. Um deixando degradar para especular e o resultado disso são cidades fantasmas. O que adianta ser proprietário de vários imóveis e não ter quem more?

Para você, quais os possíveis caminhos de resistência dos movimentos e da organização de ações contra as perseguições articuladas pelo poder público?
Vou na contramão da obediência civil: a nossa ordem é a desordem do sistema, é toda a documentação em dia e a organização cada vez mais aflorada, e descentralizar o poder público, pois ele deve ser participante. A participação popular é fundamental em todos os órgãos porque as pessoas não compreendem e o Estado não faz essa formação, avisando que as pessoas podem participar do poder público propondo, participando de audiências, de conferências, dos órgãos, da Câmara Municipal e dos mandatos. Quando vai se proferir um Plano Diretor, deflagrar uma operação urbana ou fazer um plano de bairro está mexendo com a vida de quem mora ali.

É por isso que você decidiu ser pré-candidata à vereadora?
Sim, sou uma pré-candidata à vereadora. Não quero mais fazer campanha para os outros. O que um vereador faz é, na realidade, uma zeladoria, e essa zeladoria eu já venho fazendo desde a década de 1990.

Por que você não entrou antes na política “oficial”?
Eu nunca tive esse interesse de fato porque chegava à época de eleição e diziam: “vamos apoiar um candidato tal”. E eu sempre falava: “eu quero apoiar pelo programa de governo”. Mas não basta um programa de governo. A gente percebe que o programa, às vezes, vem apenas para condicionar certo grupo de eleitores. Tem que se trabalhar programa de estado, nós temos que pensar na política como o maior campo entre a população e o poder público, ela é o maior intermediário. E também deixar de lado as suas aptidões individuais. A política é macro, não pode ser para beneficiar poucos. O representante político tem que ser um instrumento de aproximação da população com o poder público e também de desenvolvimento de políticas públicas macro. Já tem muita lei, muita resolução, mas isso precisa ser executado de fato.


“Sim, sou uma pré-candidata à vereadora. Não quero mais fazer campanha para os outros. O que um vereador faz é, na realidade, uma zeladoria, e essa zeladoria eu já venho fazendo desde a década de 1990”

Por último, gostaria de saber qual futuro você imagina para a cidade de São Paulo, agora como pré-candidata à vereadora, considerando a desigualdade tão latente?
O futuro de São Paulo e do Brasil será a partir desse pacto solidário entre a sociedade civil, os investidores sociais e o poder público. Se após a pandemia esses setores não tomarem consciência de que eles precisam conversar, parar com leis antigas e sentenças judiciais, as quais um juiz apenas copia o outro, nós estaremos ferrados enquanto cidade e país. A desigualdade é latente e precisamos de ações massivas de políticas públicas, sem embromação. É hora de todo mundo se juntar e largar essa rivalidade. Uma cidade mais justa tem que partir de um pacto solidário porque as pessoas que estão em vulnerabilidade vão continuar lutando pela sobrevivência e é necessário dar condições a elas.

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As imagens que você viu nessa reportagem foram feitas por Gui Christ. Confira mais de seu trabalho aqui

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