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Ava Rocha e sua carta para o mundo

A cantora, compositora e cineasta provoca reflexões sobre a nossa relação com a liberdade, o feminino e a natureza em seu mais recente filme “Mãe,”

por Debora Pill 3 set 2020 02h09
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(Clube Lambada/Ilustração)

nquieta, sagaz e atenta, a carioca Ava Rocha tem trilhado um caminho potente e autêntico na música, que passa pelo cinema, o teatro e a performance. No início da pandemia, por volta do mês de março, Ava recebeu um convite da conceituada instituição alemã Haus der Kultur der Welt – ou Casa da Cultura do Mundo, em português. A ideia era criar uma carta para o mundo.

Instigada pela possibilidade de explodir territórios de padrões de narrativa, linguagem, técnica e mensagem, Ava criou um filme que é, ao mesmo tempo, disco. Ou um “corpo sem fronteiras”, como ela define, criado para ocupar novos espaços e diluir fronteiras entre música e outras linguagens artísticas.

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(José de Holanda/Fotografia)

Ava percebe o momento que vivemos como grande oportunidade de libertação e transformação: “Nada parou, né? Existe toda uma energia circulando. E hoje, se você não se agarrar a sua liberdade expressiva, você está ferrado. Acredito que isso se aplique a todas as pessoas, artistas ou não. É um momento de realmente ter essa coragem, essa energia, e se agarrar a essa expansão. Não se deixar controlar por opiniões, padrões, fiscalizações. O foco deve ser a vida, independente do que você faça”.

Como nasceu a ideia de “Mãe,”?
Foi surgindo aos poucos. Com escritas, poemas e reflexões sobre o momento, eu fui tecendo essa carta para a mãe. Primeiro, decidi que poderia e deveria trabalhar com meus materiais, meus brutos, minhas sobras de trabalhos, canções que eu mesma produzi e experiências que eu nunca revelei. Tomei essa decisão na força do meu material, que é impregnado de mulheres, de atrizes, de mulheres negras, de passagens fortes como a festa de Iemanjá e as pirâmides do México. Então, fui fazendo uma trança dos meus materiais, algo que eu sempre quis fazer. “Mãe,” começou desse desejo, dessa vontade de ir trançando essas ideias. E também de retornar para o cinema e o som de uma outra forma, algo mais próximo de quando eu comecei a fazer música: produzindo eu mesma. O filme abre com a música “Mamãe Oxum” que acabou não entrando no meu último disco (Trança, 2018).

Qual o conceito do filme?
O conceito veio de um poema que escrevi, grande parte dele está presente no texto do filme. Esse poema fala sobre a relação entre encher e esvaziar. Porque hoje a gente não pode mais encher lugares, né? Então, fiquei pensando sobre o valor dessas palavras: preencher e esvaziar. Fui desenhando a estrutura e foram surgindo imagens, como a relação que faço entre a mulher e a floresta. Sinto que a energia masculina é muito conectada ao capitalismo, o patriarcado e a opressão. Por outro lado, a mulher é um corpo que vai se desdobrando. Ou seja, como se a floresta também fosse o corpo da mulher. Nós mulheres incorporamos a dor da floresta, e a dor da floresta incorpora a dor da mulher. E o sistema ceifa essa energia da criação, da gestação, da beleza, da leveza, que pra mim é o feminino.

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(Jorge Bispo/Fotografia)

É como se fosse ceifado em cadeia: uma árvore que cai é uma mulher que cai. O desrespeito que você tem por uma floresta é o mesmo que você vai ter por uma mulher. São metáforas que se encaixam em um corpo que é total. Como se eu dissesse “A lua é o olho do planeta. O planeta é o corpo. Logo, meu olho é a lua do meu planeta, que é meu corpo”. Eu fico viajando nisso. O olho e a lua. Entende? Então, fui construindo isso, a carta é pra mãe, é pra mulher, e quem são elas? A mãe é a natureza, essa mulher é a Terra, que pariu a todos nós, no corpo, na ancestralidade, na mulher negra que eu já associo com Lilith, a primeira mulher, mãe de todos nós. Quando coloco a música de “Lilith” é pra nos lembrar disso e também da falta de respeito que a gente tem com a mulher negra, a ancestralidade negra – e que é a mesma falta de respeito que a gente tem com a floresta, entende? Com nossas mães, com a Terra, com a mulher, com a mulher negra, com a Pachamama. Por isso, quis também que essas atrizes que fazem parte desse universo, que me abraçam no fazer artístico e na vida, também fossem protagonistas desse filme.

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Fale de “Mãe,” do ponto de vista de linguagem e como ele se encaixa na sua caminhada artística.
É um momento muito cinematográfico pra mim. Porque hoje tudo converge para o audiovisual. É uma interface que cumpre um papel de protagonista agora, que funciona como um palco. Isso está sendo instigante pra mim. Quero pensar essa linguagem, que telas são essas, que terreiros são esses. E como ocupá-los. Penso muito também em como diluir fronteiras: as imposições do mercado e a forma como se trata a criação. Tem muita hipocrisia na leitura que se faz hoje da obra de arte, uma vulgarização até, pelos critérios de números e sucesso. E é um momento de muita transformação para o próprio cinema. Quis retornar para o cinema e para o som de uma outra forma. Sinto que o cinema também é uma forma desses materiais existirem. Para mim, esse filme é um disco também, é um filme sem fronteiras, ou um disco sem fronteiras. A existência da música não pode ser catalogada ou presa num formato. Então, também é uma forma de me libertar de alguns critérios, padrões técnicos e métodos que o próprio ambiente do universo da música impõe. E, na minha trajetória de cantora, eu caminhei mais nessa direção porque acredito na singularidade desse meio, que é fazer música com critério, fazer bem feito.

 Então, existe aí um campo a ser explodido, entendeu? Do ponto de vista do padrão técnico, de linguagem, da narrativa, da mensagem também. Eu fico pensando muito nisso e eu falo isso para todas as pessoas, artistas ou não: a gente está em um momento que, se você não se agarrar a sua liberdade expressiva, criativa, em tudo que venha fazer, você está ferrado. É um momento de você realmente ter essa coragem, essa energia, e se agarrar a essa expansão e não se deixar controlar por opiniões, padrões, fiscalizações. É porque a arte também é cura, esses processos são curativos. Já está mais do que provado, por trabalhos como o da Nise da Silveira. Questões espirituais, físicas, e que são políticas, são tudo. A arte tem muitas camadas e dimensões que eu não diria nem só curativas, mas sim expansivas, de transformação, de abertura. Estou ligada a essa energia e acho que isso transcende a própria arte, sabe? Como as pessoas que plantam. Tudo que você faz precisa estar alinhado a essa sensação de liberdade. 


Tem muita hipocrisia na leitura que se faz hoje da obra de arte, uma vulgarização até, pelos critérios de números e sucesso. E é um momento de muita transformação para o próprio cinema. Quis retornar para o cinema e para o som de uma outra forma.

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(Jorge Bispo/Fotografia)

Como a Ava “mãe” está presente nessa obra?
A Uma (filha de Ava) está totalmente integrada na minha vida, na minha arte. Desde que fui mãe, tive também uma compreensão diferente da minha arte, um transbordamento diferente, onde eu consigo ligar, por exemplo, essas ideias que eu estou falando. São camadas: ao mesmo tempo, eu e minha filha e o mundo, a terra e a humanidade, minha casa… De dentro pra fora. É sempre uma relação intrínseca entre a singularidade e a unidade. Entre o que é seu, o que é único e o que é compartilhado com o mundo, porque somos parte da mesma coisa. Então, a Uma está sempre integrada. E ela me inspira muito, sempre.

E as demais presenças artísticas de outras pessoas no filme?
Tem materiais brutos de clipes, como da música Joana Dark, da Aline Belfort, com imagens da Michelle Mattiuzzi, tem também imagens de Auto das Bacantes, que foi dirigido pelo meu irmão Pedro Paulo Rocha, com imagens do Rafael Avancini que fez a outra câmera, e também imagens do clipe de Lilith. Tem performances minhas com a participação do meu irmão, tem a fotografia da Paola Alfamor. E vários fotógrafos que eu cito no final do filme, como a Milena Palladino, o Caio Araújo, o José de Holanda. É um tecido de olhares, de artistas. Tem várias cenas em que estou com figurinos do João Pimenta, outras em que estou com roupas e figurinos que a Isadora Gallas criou. Tem a interferência de muitos outros nomes, inclusive nas gravações de áudio de shows, com músicos tocando, como Curumin, Tomas Harres, Alessandra Leão, Ariane Lima, Vitória dos Santos. Há também duas composições no filme que não são minhas: Spring, do Luis Augusto, e a outra do Negro Leo e do Ricardo Pitta, Canção de Protesto, que é uma música que cantei muito nos meus shows. O filme fecha com Super-heroína, que eu fiz há dez anos, do meu jeito, com (o programa) Garage Band.

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(José de Holanda/Fotografia)

Como você se sente com a repercussão do filme?
Está sendo inesperado, porque tem muita gente dizendo que está emocionada com o filme. Inclusive minha mãe, que acompanhou um pouco do processo, já que montei na casa dela – mas, que quando viu o corte final, ficou bastante emocionada. Estou um pouco surpresa com essa reação, porque eu fiz esse filme com muito amor e humildade. E certo medo. Medo e coragem: o equilíbrio certo entre os dois. Estou feliz em escutar essas coisas bonitas. 

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Qual o próximo passo?
Esse filme tem só 20 minutos, cheguei a fazer um corte de uma hora. Há muito tempo eu tinha essa vontade de fazer um trabalho que tecesse minha obra dessa forma. E eu quero continuar costurando outras coisas. Tenho muitas ideias. Por exemplo, de usar os materiais fortíssimos também dos meus shows. Da minha performance no palco, tanto do (disco) Ava Patrya, como do Diurno. É muito importante para mim poder costurar obras a partir desses fragmentos. Eu estou fazendo muitas coisas nesse sentido. Estou construindo outros filmes, fazendo outras experiências, e também produzindo um trabalho pra Biblioteca Mário de Andrade com meu irmão Pedro Paulo Rocha, no qual eu construo o som do filme e ele fez a parte visual. Estou focada em finalizar esse trabalho, que vai se chamar “LUNAR”.

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