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Assédio na cozinha

Grupos de mulheres se mobilizam para denunciar o machismo e as agressões físicas e psicológicas que as profissionais da gastronomia sofrem diariamente

por Beatriz Marques Atualizado em 23 nov 2020, 13h53 - Publicado em 23 nov 2020 00h02
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(Clube Lambada/Ilustração)

Você é daquelas que gostam de apanhar”, disse o chef famoso, sem temer uma sílaba. A reação da jovem jornalista, ao escutar o comentário logo após uma rápida entrevista, não foi agressiva. Deu uma risada murcha, totalmente involuntária diante de tamanho absurdo. Somente alguns minutos depois que se deu conta do assédio, mas pensou que não valeria a pena revidar – afinal, era uma “foca”, não queria se queimar nesse meio que acabara de começar e, naquela época, exatamente 20 anos atrás, isso era visto somente como um “xaveco escroto”.

Infelizmente esse é o meu relato, e hoje consigo ver sua gravidade. Algo que não me abalou profissionalmente, mas, sem dúvida, essa atitude “normalizada” pode ter prejudicado muitas mulheres subordinadas a tal chef.

Naquela época, no início dos anos 2000, o uso de palavras de baixo calão e xingamentos no ambiente de trabalho, insinuações sobre a sexualidade de funcionárias, além de toques físicos que vão além do permitido, eram atitudes que permeavam o universo profissional de bares e restaurantes. E, infelizmente, parece que não mudou muito de lá para cá.

É só ver os inúmeros relatos que o perfil Machismo na Cozinha vem publicando no Instagram desde sua criação, em maio deste ano. “Já são mais de cinquenta”, conta Renata S.*, cozinheira e idealizadora do perfil junto com sua namorada Stephanie Y.*, administradora de empresas.

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Depois de tantas histórias contadas por amigas também da cozinha – e todas sem um final feliz – veio a ideia da dupla de usar o canal como um desabafo. “Nosso objetivo é divulgar esses abusos. Existe uma linha tênue entre a pressão diária de uma cozinha e o assédio’, explica Renata. “É para as mulheres da gastronomia se reconhecerem nos relatos, já que muitas vezes elas não percebem que estão sendo humilhadas”, completa Stephanie.

No começo, os primeiros relatos vieram das amigas próximas, mas com a visibilidade do perfil aumentando (hoje, são mais de 2.600 seguidores), mais histórias foram aparecendo. “Já recebemos muitas mensagens inbox e também fizemos um formulário do Google para quem quer falar anonimamente”, conta Renata. O conteúdo vai desde cenas de ataques testemunhadas até assédios moral e sexual sofridos.

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Se em um primeiro momento a ideia era só escutar os relatos, Stephanie e Renata receberam tantos casos graves que decidiram fazer um projeto de consultoria para atendimento jurídico das vítimas. Em agosto nasceu, em parceria com a Lince Assessoria, o Botão Vermelho, uma ferramenta de denúncia gratuita e anônima contra assédio moral e sexual no ambiente de trabalho. Após a denúncia da vítima, que tem a confidencialidade garantida a partir da Lei de Proteção de Dados, o agressor ou o estabelecimento são notificados. “Queremos acabar com a certeza da impunibilidade. É isso que mantém vivo o assédio”, afirma Izabel Scavazza, psicoterapeuta e sócia da Lince. “Um abusador sempre foi um abusador. Só que ele nunca foi pego”, completa.

Além de receber a advertência – “é para que ele repense em sua atitude e procure um psiquiatra para ver se é uma patologia ou um distúrbio emocional”—, o nome do abusador vai para um “cadastro vermelho”, uma forma de mapear se o abusador é recorrente. “Se o assédio acontecer novamente, enviamos uma notificação para a direção da empresa. E se for algo mais grave, como um estupro, encaminhamos diretamente para a delegacia, mas sempre com a autorização da vítima”, explica Izabel.

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É claro que denunciar é um passo importantíssimo para que o assédio diminua, mas a finalidade do perfil não é apontar o dedo ao culpado. “Precisamos tratar esses temas delicados. Há várias questões que não podem mais continuar”, opina Renata.

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“Estava no meu primeiro período de faculdade, louca pra entrar uma cozinha profissional. Quando ouvi que meu professor estava selecionando algumas pessoas para estágio, logo fui atrás dele perguntar sobre. E ele me respondeu: ‘Se você me pagar um sexo oral, que mal tem?’. Simplesmente fiquei em choque” – Relato para o @MachismoNaCozinha
“Estava no meu primeiro período de faculdade, louca pra entrar uma cozinha profissional. Quando ouvi que meu professor estava selecionando algumas pessoas para estágio, logo fui atrás dele perguntar sobre. E ele me respondeu: ‘Se você me pagar um sexo oral, que mal tem?’. Simplesmente fiquei em choque” – Relato para o @MachismoNaCozinha (cottonbro/Pexels)

Quando dói no bolso

Os danos psicológicos que a vítima sofre com as agressões no trabalho podem gerar diversas consequências, como casos de depressão, estresse pós-traumático, síndrome do pânico. Mas não pense que somente a vítima sai perdendo nessa terrível história: a empresa também.

Há diversos estudos que demonstram a perda de produtividade em um ambiente dominado pelo assédio. Uma pesquisa feita pela empresa Vagas.com, com quase 5 mil pessoas no Brasil, revela que 52% dos entrevistados já vivenciaram algum tipo de abuso e, entre esses, 39,6% disseram que o episódio prejudicou o desenvolvimento profissional. E, claro, a maioria das vítimas é do sexo feminino: entre as que sofreram assédio moral, elas representam 51,9% dos casos; já o sexual, as mulheres respondem a 79,9% da amostra.

Outro ponto que perturba a empresa é o valor das indenizações. Segundo levantamento da Data Lawyer, empresa especializada em análise e inteligência artificial em processos judiciais, em 2018, somente as indenizações no Brasil por assédio sexual no trabalho foram mais de R$ 126 milhões, valor referente a 1.448 ações. Detalhe importante: a categoria líder de processos é a de restaurantes e similares, com maior ocorrência na Grande São Paulo.

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A cozinha é para os fortes?

Um ambiente quente, com fogo e facas, onde tarefas são executadas com muito esforço e agilidade, propiciam uma tensão enorme entre os colegas de trabalho. E quando a gestão não é bem-feita pelo chef, é comum o respeito desandar. “A cozinha já tem essa cultura agressiva e as críticas dos líderes são pessoais. O chef chama: ‘você é incompetente!’ com muita naturalidade, algo que não tem no mundo corporativo”, explica Stephanie, que trabalha em uma empresa de grande porte nos Estados Unidos.

O pior é quando essa agressividade deixa de ser repreendida e é “glamourizada”. Sim, os esporros que um funcionário leva no seu ambiente de trabalho viram grandes atrações de muitos reality shows de cozinha – um dos mais icônicos é o britânico Hell’s Kitchen, no qual não faltam palavrões, críticas abusivas e muito temperamento excessivo por parte do chef britânico Gordon Ramsay. Assim, o assédio moral é cultivado e exacerbado para conquistar a audiência. “A cozinha de um restaurante é algo novo na TV. E a primeira imagem estampada na cara do público foi esse lado violento”, argumenta Stephanie.

via GIPHY

Nesse ambiente sob pressão, tanto física quanto psicológica, e militarizado – termos como “marchar” o prato e “brigada” da cozinha são exemplos –, as mulheres são bem mais questionadas sobre sua capacidade profissional do que os homens. Entre os relatos mais comuns está em colocar a força da mulher como um fator de incompetência, quando não consegue carregar muito peso, algo comum no trabalho. E tratar com respeito e igualdade é entender o limite de cada um.

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Mas para entender o motivo de ser uma profissão tão masculinizada, é necessário olhar para o passado. Mais exatamente para o final do século 19, quando o francês Auguste Escoffier (1846-1935), considerado “o rei dos chefs e o chef dos reis”, impulsionou a indústria hoteleira da época e sistematizou as ações da cozinha profissional. Só que ele fez questão de excluir as mulheres, que deveriam se conter ao ambiente doméstico.

“A cozinha já tem essa cultura agressiva e as críticas dos líderes são pessoais. O chef chama: ‘você é incompetente!’ com muita naturalidade, algo que não tem no mundo corporativo”

Stephanie Y

O pior está na justificativa. O trecho de discurso de Escoffier, em 1890, publicado no Annual Report of the Universal Food and Cookery Association, dá exatamente a dimensão do machismo na época: “Nas tarefas domésticas, é muito difícil encontrarmos um homem se igualando ou excedendo uma mulher; mas cozinhar transcende um mero afazer doméstico, trata-se de uma arte superior (…) Uma das principais faltas de uma mulher é sua ausência de atenção aos menores detalhes – a quantidade exata de especiarias, o condimento mais adequado a cada prato; e essa é uma das principais razões pelas quais seus pratos parecem pálidos diante daqueles dos homens, que fazem os pratos mais adequados a cada ocasião (…) Quando as mulheres aprenderem que nenhuma insignificância é demasiadamente pequena para ser desprezada, então iremos encontrá-las à frente das cozinhas dos clubs gourmets e dos hotéis; mas até então esses serão lugares nos quais, certamente, o homem reinará absoluto.”

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(A FINE LINE/Divulgação)

Para assistir:
A FINE LINE

“É mais fácil uma mulher se tornar uma CEO do que uma chef”. A frase publicada no canal de notícias Bloomberg News abre com primor o documentário A Fine Line, lançado em 2019 nos Estados Unidos. Dirigido por Joanna James, o filme traz perspectivas e experiências de chefs internacionalmente conhecidas, como Dominique Crenn (São Francisco, EUA), Elena Arzak (San Sebastián, Espanha) e Sylvia Weinstock (Nova York, EUA), e a história pessoal de Valerie James, mãe de Joanna e proprietária do Val’s Restaurant, em Holden (Massachusetts, EUA).

Além de trazer informações atuais sobre o mercado da restauração para mulheres e dados históricos, temas como assédio, crescimento na carreira, remuneração similar para homens e mulheres são discutidos ao longo do documentário. Saiba mais no site AFineLineMovie.com (locação disponível mediante pagamento de US$ 5,99).

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Lugar de mulher

Assim como a “codificação culinária” de Escoffier foi adotada pela maioria dos restaurantes no mundo e continua atual, o mesmo aconteceu no que se refere à presença feminina na profissão. Claro que, com o passar do tempo, as mulheres foram ampliando sua representatividade na restauração, mas ainda não estão em posição de igualdade com homens quando se trata de cargos de chefia, como mostra o documentário A fine line. O mais triste: existem muitas chefs que carregam o machismo sofrido durante a carreira e, talvez de forma involuntária, o reproduzem com suas funcionárias, na lógica do “se eu passei por isso, a outra precisa também passar”. “É um ciclo que está normatizado. Enquanto não tiver algo que corte esse rito, nada vai dar certo”, opina Renata.

Um dos motivos pelo qual Renata fundou o Machismo na Cozinha foi exatamente assédio moral e machismo praticados por sua chef, em um restaurante de Curitiba. “Eu queria mudar de praça, da confeitaria para a de produção, e ela disse que eu não ia aguentar por ser mulher. Eu fiquei frustrada, pois tinha me preparado para estar lá. Se eu fizesse um mau trabalho, tudo bem. Mas fui recusada só por esse motivo”, relembra. Só que, em vez de aceitar, Renata insistiu: “Mesmo a contrariando, mostrei que era capaz e ela acabou me promovendo, mas tive de trabalhar muitas horas a mais para provar.”

“Eu queria mudar de praça, da confeitaria para a de produção, e ela disse que eu não ia aguentar por ser mulher. Eu fiquei frustrada, pois tinha me preparado para estar lá. Se eu fizesse um mau trabalho, tudo bem. Mas fui recusada só por esse motivo”

Renata S.

Infelizmente, nem todas as histórias têm final feliz como a de Renata. Pelo contrário: muitas cozinheiras abandonam a carreira por conta do assédio. E a luta é para que o trauma não vença o sonho da profissão.

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(cottonbro/Pexels)

#MeToo gastronômico

Enquanto no Brasil o assunto ainda está ganhando fôlego, nos Estados Unidos muitos casos de assédio por chefs famosos foram colocados à tona, com consequências sérias para seus negócios. Impulsionadas pelo movimento #MeToo, em 2017, que atingiu a indústria do entretenimento norte-americano e causou a prisão do produtor de cinema Harvey Weinstein, mulheres da gastronomia se encorajaram para fazer denúncias. Dono de um império com mais de 20 restaurantes e rosto conhecido em diversos programas de culinária, o chef Mario Batali teve sua carreira manchada depois que quatro mulheres (três delas ex-funcionárias) o acusaram de assédio sexual, também em 2017. Dois anos depois, ele se desligou totalmente do Batali & Bastianich Hospitality Group, então com 16 casas – a família Bastianich, da qual era sócio, comprou sua parte no negócio.

Outro que sentiu o baque foi Ken Friedman, sócio do badalado The Spotted Pig, em Nova York. Também em 2017, várias mulheres o acusaram de má conduta sexual e, mesmo assim, ele continuou à frente do restaurante. Considerada por muitos como cúmplice das atitudes do sócio, a aclamada chef April Bloomfield acabou admitindo sua conivência e falta de atitude para proteger seus funcionários. O resultado: o Spotted Pig fechou suas portas em janeiro deste ano.

Por mais que o tormento ainda esteja longe de acabar no mercado da restauração norte-americano, o “efeito Weinstein” foi positivo para mudanças na legislação sobre assédio sexual no local de trabalho. Cada estado vem adotando políticas de combate ou reforçando as já existentes. Em Nova York, por exemplo, empresas de qualquer porte devem adotar uma política de prevenção e aplicar um programa de treinamento a seus funcionários, segundo lei iniciada em outubro de 2018. E em Delaware, a nova lei obriga empresas com pelo menos 50 funcionários a dar treinamento específico contra o assédio sexual.

Outra atitude de menor porte, mas não menos importante, está em comunicar ações anti-assédio em pôsteres espalhados pelo restaurante – atitude tomada pelo BRG Hospitality, de Louisiana, com nove marcas. Antes chamado de Besh Restaurant Group, teve sua gestão alterada depois que o chef John Besh, CEO do grupo, foi acusado em 2017 de “perpetuar uma cultura de assédio sexual” e má conduta sexual nos restaurantes, o que resultou em seu completo afastamento pouco tempo depois. Pendurados nas cozinhas e nos escritórios do BRG, os pôsteres ainda trazem um número de ligação direta para denúncias anônimas.

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Basta! e as acusações

Outro perfil do Instagram que está voltado para o atendimento a vítimas de assédio é o Basta! (@basta.br). O coletivo formado por mulheres surgiu durante a pandemia e recebe, anonimamente, relatos por e-mail (oi.eudigobasta@gmail.com) ou mensagem direta no Instagram.

O objetivo do grupo, entre cozinheiras, restauradoras, advogadas, ativistas, psicólogas e profissionais da área de direitos humanos, vai além da escuta e do acolhimento às assediadas – elas analisam cada denúncia e, dependendo da gravidade, sugerem encaminhar para a esfera jurídica.

Enquanto esse apoio é dado às vítimas, o Basta! também deseja combater os abusos com informação. “Queremos consolidar dados do setor – quantas mulheres há na cozinha e quantas destas estão em cargos de chefia, por exemplo – para focar na igualdade de gênero e saber onde e como atuar”, explica Maria Eduarda Melo, a Madu, chef e proprietária do restaurante Mandioca, em São Paulo, e uma das participantes do Basta!.

Trabalhar de forma colaborativa com diferentes organizações entra na lista de tarefas do coletivo. “Pretendemos desenvolver cartilhas mostrando como identificar e combater o assédio, e fazer parcerias com a Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes) para distribuir ao setor”, conta Madu.

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“Queremos consolidar dados do setor – quantas mulheres há na cozinha e quantas destas estão em cargos de chefia, por exemplo – para focar na igualdade de gênero e saber onde e como atuar”

Madu, chef do Mandioca

Com mais de 5.600 seguidores no Instagram, o Basta! tem publicado partes chocantes de relatos recebidos (sem revelar identidades) e, consequentemente, muito apoio em comentários indignados. Porém, um caso recente causou um boom de reações negativas ao coletivo.

Em outubro, o chef Alberto Landgraf, do Oteque (Rio de Janeiro), repostou em seus Stories uma série de denúncias que recebera por mensagem direta, acusando a chef Roberta Sudbrack (participante do Basta!) de assédio. Como forma de repúdio à atitude de Landgraf, o Basta! publicou uma foto da chef com texto pedindo respeito à profissional e às mulheres. Enquanto muitos fãs e cozinheiros demonstraram apoio a Sudbrack, outros usuários se revoltaram com a posição do coletivo que, mesmo com os comentários fechados na publicação, deixaram suas insatisfações em outros posts do coletivo, como a “passada de pano” ao caso.

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(cottonbro/Pexels)

Colocando os pingos nos is

Para conseguir identificar qual tipo de assédio que a vítima sofreu no trabalho, vale olhar abaixo as definições publicadas em cartilha organizada pelo Comitê Permanente pela Promoção da Igualdade de Gênero e Raça do Senado Federal:

» Assédio Moral

Consiste na repetição deliberada de gestos, palavras (orais ou escritas) e/ou comportamentos que expõem o(a) empregado(a) a situações humilhantes e constrangedoras, capazes de lhes causar ofensa à personalidade, à dignidade ou à integridade psíquica ou física, com o objetivo de excluí-lo (la) das suas funções ou de deteriorar o ambiente de trabalho.

Alguns exemplos comuns de assédio moral:
– criticar a vida privada, as preferências pessoais ou as convicções da pessoa assediada;
– controlar a frequência e o tempo de utilização de banheiros;
– agredir verbalmente, dirigir gestos de desprezo, alterar o tom de voz ou ameaçar com outras formas de violência física.

O assédio moral pressupõe, conjuntamente: repetição (habitualidade); intencionalidade (fim discriminatório); direcionalidade (agressão dirigida a pessoa ou a grupo determinado); e temporalidade.

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» Assédio Sexual

É definido por lei como o ato de “constranger alguém, com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função” (Código Penal, art. 216-A). Trata-se de um comportamento de teor sexual merecedor de reprovação, considerado desagradável, ofensivo e impertinente. A lei pune o constrangimento que tem o sentido de forçar, compelir, obrigar alguém a fornecer favor sexual. Tal proteção abrange todas as relações em que haja hierarquia e ascendência: relações laborais, educacionais, médicas etc.

Alguns exemplos comuns de assédio sexual:
– narração de piadas ou uso de expressões de conteúdo sexual;
– contato físico não desejado;
– promessas de tratamento diferenciado;
– pressão para participar de “encontros” e saídas.

Diferente do assédio moral, a conduta no assédio sexual pode ser repetida, ou não.

» Dano moral

Segundo Izabel Scavazza, da Lince Assessoria, o dano moral acontece quando a vítima sofre consequências do assédio em seu ânimo psíquico, moral e intelectual, seja por acometimento à sua honra, intimidade, imagem, nome ou em seu próprio corpo. E, ao contrário do assédio moral, não é necessário que haja repetição das ofensas que o caracterizam. “O dano é a consequência do assédio, trazendo tristeza, mexendo com sua estrutura emocional. E a recompensa é financeira”, explica Izabel.

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Depoimentos

A seguir, relatos de profissionais da cozinha que sofreram assédio e procuraram os perfis Machismo na Cozinha e Basta!

Adriana*, 25 anos, em depoimento ao perfil Machismo na Cozinha

Sempre tive uma relação de amor com a cozinha, desde meus 11 anos faço bolos. Fiz faculdade de gastronomia e comecei a trabalhar em restaurantes, mas por conta de tanto machismo e assédio que sofri, desisti da cozinha.

Na primeira entrevista que fiz na vida, em um restaurante em Curitiba, uma mulher me perguntou: ‘Nossa, você é tão magrinha, não vai dar conta’. Eu ignorei e fui embora.

Em outro restaurante, entrei como garde manger com mais dois meninos. Um deles era estagiário e sempre o ajudei, mas começaram boatos sobre nós. Uma pessoa da equipe comentou: ‘Por que você não faz uma boa ação e tira a virgindade dele, já que vocês estão tão próximos?’. E o sous chef achou engraçado. Eu fiquei sem reação.

“Chegou ao ponto de um dia estar cortando uns legumes e um cozinheiro passou esfregando o pau dele na minha bunda. Eu fiquei em choque”

Adriana

Mas foi no restaurante seguinte que vivi um inferno. Mesmo nomeada chefe da praça de acompanhamento, dois homens, mais velhos, não obedeciam a minhas ordens; aguentei a insistência de um garçom para sair comigo e depois descobri que era casado; ainda tive de lidar com o boato de que um dos cozinheiros tinha traído a mulher comigo e ela veio tirar satisfações, me mandou mensagem…

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Outro grande problema foi o sous chef. Ele me questionava o tempo todo: ‘Você vai fazer isso da sua vida? Você não vai aguentar tanto tempo’. Falava que só fui contratada porque sou bonita. E quando eu não conseguia carregar as caixas de 20 kg de batata, me falava: ‘Ué, as mulheres não querem direitos iguais na cozinha? Por que então você não leva lá pra baixo?”. Era uma pressão diária.

Fui reclamar com o chef, que não dava mais. Ele me mudou de praça, mas aí começaram mais boatos. ‘Você sabe que ele te mudou porque ele gosta de você’, foi o que escutei da mulher do RH.

Chegou ao ponto de um dia estar cortando uns legumes e um cozinheiro passou esfregando o pau dele na minha bunda. Eu fiquei em choque. Não falei nada na hora, mas depois reclamei para o sous chef e ninguém fez nada contra ele.

Com tudo isso, eu passei a me inferiorizar. Eu não me maquiava mais, não me arrumava, perdi a vaidade. Comecei a não ser simpática com os homens.

Tentei pedir demissão duas vezes, mas o chef sempre me convencia a ficar. Um dia entreguei minha carta de demissão ao sous chef e ele disse: ‘Sabia que você ia sair’.

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Eu cheguei a relatar o assédio ao sindicato, assim como o excesso de horas trabalhadas. Mas eles falaram que eu precisava reunir provas e de testemunhas. É difícil ter provas de tudo e ainda depender de outra pessoa para comprovar, que pode perder o emprego por isso.

“Eu fiquei doente, emagreci muito, tinha muita infecção urinária porque não tinha tempo de ir ao banheiro”

Adriana

Quando consegui me desligar desse restaurante, depois de seis meses, estava deprimida e fui procurar ajuda. A psicóloga diz que minha autoestima estava baixa, por tudo o que aconteceu. Eu fiquei doente, emagreci muito, tinha muita infecção urinária porque não tinha tempo de ir ao banheiro. É um ambiente muito tóxico.

Mesmo assim, insisti na carreira e fui trabalhar em outro restaurante, também em Curitiba. Mas já na segunda semana um garçom veio me importunar, ficava mandando recadinhos amorosos. Quando descobriu que eu tinha namorado, veio tirar satisfação comigo! Mas desta vez o sous chef conversou com ele e o assédio parou.

Fiquei um ano lá e saí porque não estava recebendo nada em troca – muito trabalho, pouco reconhecimento.

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Hoje eu tenho meu negócio, faço bolos para festas. Se eu tiver algum restaurante, já sei tudo o que não vou fazer. Quero uma equipe só de mulheres, sem homens por perto.

Carol*, em depoimento ao perfil Basta!

O amor pela cozinha vem desde as refeições preparadas em família, não precisava de data festiva para cozinharmos juntos.

Mas só vi que seria minha profissão depois de desistir de outro curso e estudar confeitaria no Senac Rio. Trabalhei em uma chocolateria e logo depois fui para um restaurante em Búzios (RJ), dentro de um hotel estrelado.

Eu era a confeiteira e a única mulher entre os cinco cozinheiros, que me fizeram sofrer vários episódios de machismo, de assédio moral.

Por ser a última a sair da cozinha, tinha de checar tudo, já que o gerente do hotel fiscalizava na manhã seguinte. Mas sempre tinha algo sem arrumar, como panela gigante, imunda, para limpar. E sobrava pra mim. Não entendia por que todo mundo tinha de ir embora antes e ainda ter de arrumar bagunça dos outros.

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“Eu não podia falar nada, porque os cozinheiros eram protegidos do chef – eles saíam juntos, eram uma patota. Ficavam me chamando de “menina” e “garota”, enquanto eles eram os ‘caras’ e os ‘homens'”

Carol

Quando eu voltava da minha hora de almoço, percebia algo fora do lugar ou sujo na minha bancada, sem motivo, pois não tinha saído pedido. Ficava grilada e, um dia, vi pelas câmeras de segurança que os cozinheiros estavam me sabotando: abriam a geladeira e comiam coisas – por isso que a conta nunca fechava.

Eu não podia falar nada, porque os cozinheiros eram protegidos do chef – eles saíam juntos, eram uma patota. Ficavam me chamando de “menina” e “garota”, enquanto eles eram os “caras” e os “homens”. E eu ralava muito, queria provar que conseguiria ficar no trabalho, que ia ser ótimo para o meu currículo.

Um dia o chef me chamou para conversar: ‘Não sou machista, mas olha para suas mãos’. Fiquei sem entender nada, olhando para ele. ‘Isso não é mão de cozinheiro, não tem queimadura’. Indignada, eu falei: ‘Desculpa, chef, mas você quer que eu fique me queimando para mostrar serviço?’. E ele só disse: ‘É… você quer pegar as coisas com muito cuidado’.

Pior que ele não tinha reclamação profissional minha. Quando ele me demitiu, disse: ‘Você trabalha bem, acho que tem um bom futuro pela frente, mas você não se deu bem com o staff’. Muito provável que os outros cozinheiros tenham me queimado para o chef.

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No total, foram só dois meses que pareceram uma eternidade. Cheguei a vomitar de stress toda a semana. E nesse período, o chef ficou um mês de férias. Antes de ele sair, me disse: ‘Não quero você inventando nada na minha cozinha, tá?’. Mas quando ele voltou, perguntou: ‘Todo mundo fez algo diferente, por que você não fez nada?’. Depois que eu o relembrei da ordem dada, ele retrucou: ‘Mas se todo mundo tá fazendo, você também tem que fazer’.

“O que mais me perturba nessa história é que quem me indicou o trabalho em Búzios foi meu ex-namorado, que também é cozinheiro. Também vivi horrores com ele – me assediou e me agrediu. O pior: ele sabia de todo assédio no restaurante e, tempos depois, quando já não estávamos juntos, foi trabalhar lá no meu lugar e virou ‘melhor amigo’ dos cozinheiros”

Carol

O que mais me perturba nessa história é que quem me indicou o trabalho em Búzios foi meu ex-namorado, que também é cozinheiro. Também vivi horrores com ele – me assediou e me agrediu. O pior: ele sabia de todo assédio no restaurante e, tempos depois, quando já não estávamos juntos, foi trabalhar lá no meu lugar e virou “melhor amigo” dos cozinheiros. Na época eu fiquei louca, mas agora sei que ele está junto de seus semelhantes. Hoje tenho medo de cruzar com ele.

Depois de Búzios, fui fazer estágio em Portugal e lá me senti acolhida, todo mundo se respeitava. Foi importante para mim, pois cheguei a ter vontade de desistir da carreira. Tive dúvidas da minha capacidade, por tudo o que vivi.

Hoje, relatando minha história, é difícil separar o racional do emocional do que fica. São cicatrizes sensíveis. Como já passou um bom tempo, nem sei se dá para acionar juridicamente meu ex-namorado. E, sobre o restaurante, o chef é conhecido e eu vou me queimar – quem vai querer me contratar depois?

*Os nomes das vítimas foram alterados para preservar a identidade. Também não foram citados os estabelecimentos e o nome dos envolvidos.

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