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André Carvalhal reflete sobre sistemas antigos que estão colapsando e propõe novos caminhos para vivermos o amanhã em "Como salvar o futuro", seu novo livro

por Alexandre Makhlouf Atualizado em 26 out 2020, 11h32 - Publicado em 21 out 2020 00h01
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(Clube Lambada/Ilustração)

rasil. O ano é 2020 e começou cheio de promessas. Era ano de Olimpíadas, tivemos recordes de gente na rua nos Carnavais  todo e anseávamos por uma nova eleição em que pudéssemos, mais uma vez, juntar forças para melhorar o país – cada um a seu jeito e dentro de suas crenças, que fique claro. Mas, em março, o Brasil parou, o mundo também, e toda nossa concepção de futuro foi colocada em pausa. Ou melhor: foi estraçalhada com uma marreta e cada caco desse esperado futuro foi enviado para uma região diferente do universo. Se a descrição te parece dramática demais, eu… não vou pedir desculpas. Porque sei que é dessa forma que muitas pessoas se sentem, este que vos fala incluso.

Fato é que, em meio ao caos da pandemia do novo coronavírus e as mais de 150 mil mortes que tivemos só no Brasil, ainda tem muita gente pensando sobre o amanhã, sabendo que ele vai chegar e que, quando isso acontecer, temos que estar preparados para não repetir os mesmos erros de antes. André Carvalhal, escritor e consultor, faz parte desse time. Em seu novo livro, Como salvar o futuro? (Cia. das Letras), André se debruça sobre a pergunta que mais nos fizemos nos últimos meses e arrisca, com base em estudos, pesquisas, entrevistas e uma boa dose de conhecimento, a propor caminhos para o futuro em diferentes áreas. 

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(Francisco Cherchiaro/Divulgação)

“O futuro sempre foi vendido para nós como algo muito legal, desde Os Jetsons, numa realidade parecida com a que a gente vive agora. Foi a previsão mais otimista que tivemos, talvez por isso essa ilusão de que tudo ia dar certo no futuro. Agora, a nossa geração chegou neste futuro e viu que ele é uma bomba prestes a explodir: polarização de todo lado, críticas, crise em todas as áreas da nossa vida. Não dá mais para achar que vivemos uma crise econômica. Ela é também política, moral, ética, da família. Mais do que nunca, estamos nos dando conta de que tudo é muito sistêmico e entrelaçado”, explica André. “O futuro é uma ilusão, é a gente que o constrói com as nossas ações. Chegamos nessa situação limite por conta do que a gente vinha fazendo. E não estou falando sobre culpabilizar as pessoas. Quando eu falo ‘a gente’, é sobre todas as pessoas, e isso inclui os empresários, os políticos, os donos de empresa.”

Fica um tanto quanto incoerente, neste caso, pensar em salvar o futuro sem olhar para as atitudes do presente. Se a conclusão parece óbvia, é porque ela é mesmo – o que não significa, de jeito nenhum, que as pessoas já entenderam isso. “Já tivemos guerras, pandemias, acidentes e crimes ambientais. De alguma forma, a gente superou tudo isso. O futuro vai se construindo e desconstruindo a todo momento. Agora, é a hora da gente construir ou desconstruir o futuro próximo”, completa.

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Um dos exemplos de mudança que o novo livro de André traz está estampado em todas as páginas: a linguagem. Em um momento no qual debatemos tanto sobre machismo, patriarcado e manutenção de estruturas de poder que excluem boa parte da sociedade, a língua portuguesa também não foi poupada, já que todas as generalizações, para nós brasileiros, são feitas no masculino. Em resposta a isso, André traz uma linguagem o mais neutra possível, substituindo alguns plurais no masculino usando a letra E e também reescrevendo frases para reforçar a individualidade de cada um e, assim, conscientizar cada leitor sobre sua responsabilidade. Ou seja: onde se leria “todo mundo” ou “todos” em outros livros, neste se lerá “todes” ou “todas as pessoas”.

André bateu um papo com Elástica direto da zona norte do Rio de Janeiro, onde continua isolado e respeitando o distanciamento, para falar como podemos salvar o futuro – ou pelo menos mudar nossas atitudes presentes para melhorá-lo – em diversos aspectos. O resultado você confere aqui embaixo.

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Alimentação

“Já está mais do que comprovado que esse sistema que a gente utiliza hoje, muito baseado no consumo de produtos de origem animal, seja carne ou derivados, é um sistema insustentável a longo prazo. Não é uma questão de gosto ou opção, temos muitos estudos que apontam para esse sistema como o maior responsável pelas mudanças climáticas, emissões de carbono. Ele está muito relacionado ao desmatamento, o principal vetor de desmatamento ilegal é na Amazônia é a pecuária, fato comprovado em relatórios do GreenPeace e da ONU, que são citados no livro. A solução pra isso? Uma transição cada vez maior para sistema de alimentação à base de plantas, além de trabalhar a redução do consumo de carne e a conscientização dessa natureza sistêmica e da relação com os impactos ambientais. Olhando mais a fundo, o próprio covid-19 é um reflexo disso: foi comprovado que ele está relacionado à nossa interferência com a natureza, destruindo habitats de espécies exóticas, com animais vindo mais perto da gente e trazendo novas doenças. Também é hora de falarmos sobre os resíduos: olhamos alimento como lixo quando, na verdade, essa sobra pode ser compostada, virar adubo, virar outras refeições.”

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(Arte/Redação)

Saúde mental

“Impossivel falar sobre esse tema sem tocar em autoconhecimento. A gente acabou entendendo o autoconhecimento por um viés muito pejorativo, de autoajuda, de charlatanismo, com coaches e pessoas que não fazem trabalhos sérios. Recentemente, tivemos diversos escândalos envolvendo gurus. Autoconhecimento é uma coisa que liberta a gente de tudo que é exterior, conecta a gente com o que é de fato fundamental e importante para cada um de nós. Tudo que vejo sobre problemas de saúde mental – lembrando que não sou médico, psiquiatra, nada disso, apenas alguém que estuda e observa o comportamento das pessoas – está relacionado a stress, trabalho, redes sociais, relacões tóxicas. A raiz de tudo isso é uma desconexão profunda da gente com a gente. Falo inclusive de mim: entendendo que era gay e que não tinha grana, desde pequeno sabia que ia ter que ralar, trabalhar muito, viver a vida numa grande maratona para provar que eu era o melhor, era capaz. Apesar de tudo que não era aceito socialmente, eu era qualificado, bom profissional. Isso trouxe uma série de questões e problemas pra mim, traumas, e me desconectou muito de quem eu realmente sou. Falo muito sobre essa questão de a gente começar a entender mais quem a gente é, se ver como parte da natureza, se conectar com ela, com as outras pessoas.

Amor e sexo

“Nessa pandemia, voltei para a casa da minha mãe por ela – e por mim também. Acho que, talvez, seja o momento de também encontrar esses novos arranjos. A gente vem desse lugar onde a relação era estabelecida por um casal, com duas opções socialmente aceitas: ou casado, ou solteiro. Sempre com os lados positivos e negativos de cada escolha. Agora, temos a oportunidade de criar novos cenários, entender as nuances que existem entre estar sozinho e estar em par, ter alguém. Entender o quanto estar com uma outra pessoa não deve excluir essa necessidade de você saber ser sozinho, ficar com seus pensamentos. É importante somar e compartilhar, mas também se bastar. Recebi uma matéria que dizia ‘agora, está permitido estar solteiro’. Desde que a gente nasce, ter uma relação heteronormativa é o que a gente é direcionado a encontrar. Agora, temos a chance de buscar essas intersecções entre o que é estar sozinho e o que é estar acompanhado. Estar solteiro não significa estar sozinho e estar em par não necessariamente é estar monogâmico. E isso também não significa demonizar o sistema que já existia, mas avaliar qual tipo de acordo faz sentido para você naquele momento”

Consumo e sustentabilidade

“Entender que o sistema como um todo foi construído para que ele não seja consciente. Se a gente toma consciência sobre os impactos do que a gente faz, come, compra, e se a gente reduz e para de fazer dessa forma, o sistema quebra. Vimos isso um pouco na pandemia com lugares impedidos de funcionar, fábricas mandando gente embora. O sistema que conhecemos se construiu de uma forma que é uma arapuca: ele se privilegia da exploração das pessoas e do planeta. Falar sobre consumo consciente ou sobre sustentabilidade tem sido cada vez mais difícil para mim, de aceitar isso como algo possível ou real dentro desse sistema que a gente vive hoje. A sensação que eu tenho é que, conforme as pessoas forem entendendo mais sobre isso, o mercado entende isso também, vai criando selos e narrativas de sustentabilidade – e muitas delas não são de fato reais. Tem muita marca vegana, mas que tem embalagem de plástico, reduzindo impacto de um lado e aumentando o impacto de outro. O consumo consciente é vendido como algo que não gera impacto, mas tudo que a gente faz gera, sim, impacto. A visão que eu tenho hoje sobre isso é ter consciência daquilo que você está comprando, fazer as escolhas de forma consciente, onde você está colocando seu dinheiro. A única alternativa seria reconstruir, mudar tudo isso, ir para uma lógica de produção que é circular, aproveitar as coisas que já existem. Enquanto vivermos essa lógica de obsolescência programada, não vai existir consumo consciente. A Apple diz que não vai mais vender iPhone com cabo para diminuir o tamanho da caixa e a emissão de carbono. Mas o quanto estimular as pessoas a terem um celular novo gera um impacto muito maior? Optar por continuar com o seu celular até ele de fato parar de funcionar, isso, sim, é um ato de consumo consciente – ainda que você não esteja consumindo nada novo.” 

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(Arte/Redação)

Economia

“A nossa economia vai bem quando a natureza e as pessoas vão mal. Quando o PIB está bombando, significa que as empresas que mais faturam no mundo estão ganhando mais dinheiro e os bilionários estão ficando mais bilionários, o que está conectado com a exploração e o empobrecimento da classe trabalhadora, está muito relacionado à exploração desgovernada de recursos do meio ambiente – petróleo, terras, água. Não à toa, em todos os períodos da história em que a natureza esteve melhor, foram períodos de recessão ou crise. Este ano, o ‘cheque especial do mundo’ adiou um mês, alguns rios ficaram cristalinos, mas não podemos comemorar isso porque o custo foi a vida de milhares de pessoas. O que ficou escancarado é a interferência das pessoas na natureza, o quanto nossos impactos de fato interferem. Precisamos encontrar uma nova forma de economia e de consumo, que seja respeitosa com pessoas e com recursos naturais.”

Religião

“A próxima religião, para mim, é você ser seu próprio guru. Entender o que te faz bem, passear por o que te faz sentido, aproveitar o que tem de bom em cada lugar. O problema que existe em relação à religião e a crítica que eu faço é quando ela se torna também uma estrutura de poder, é um pouco do que nos dá raiva da bancada evangélica, da igreja católica. Quando colocam que até sua salvação e conexão com Deus precisa ser feita através de uma pessoa, uma instituição financeira, as coisas se embaralham e a coisa perde o propósito. As religiões surgiram lá atrás para conectar a gente com o divino, com essa força, para organizar e estabelecer essa ponte. Mas parece que o que a gente vê hoje são essas instituições criando esse afastamento do que eram os próprios valores iniciais: amor, liberdade, igualdade. Essa nova religião que precisa surgir precisa ser destituída de relações de poder, de figuras de poder. Você pode ir nos lugares, claro, eu mesmo me conecto com várias vertentes diferentes. Trago uma crítica também muito grande no livro: o movimento que parece surgir depois disso, da igreja, que são essas novas terapias ou filosofias – espiritualidade em vez de religião, se conectar com um guru, com a física quântica, com a energia x. Acho que a gente tem que tomar um pouco de cuidado também para isso não virar uma estrutura capitalista de vender cursos, ideias, principalmente questões e filosofias que, de uma forma diferente, acabam reproduzindo a mesma opressão que a gente vive em outros lugares. Muitos lugares por onde passei falavam o quanto você cria sua realidade, o que você vibra é o que você recebe. Por mais que eu entenda e experimente um pouco dessa magia no meu dia a dia, não posso aceitar que isso seja o único fator determinante, porque é automaticamente dizer que pessoas que são estupradas ou escravizadas são responsáveis por isso. Ou então que pessoas que estão em situações de vulnerabilidade em diversos lugares, do indígena a alguém em uma comunidade, que nasceram num grupo social menos favorecido, tem alguma culpa ou envolvimento nisso. A grande crítica que faço é sobre as relações de poder, a opressão e a conexão com o financeiro, esse mercantilismo espiritual.”

Política

“Ela está presente em todos os outros tópicos. Durante muito tempo, a gente foi muito pouco estimulado a pensar politicamente. Perdi a conta de quantas eleições votei nulo, branco, achava chatíssimo horário político, não me envolvia. Talvez, se a gente tivesse a opção de votar aqui ou não, acho que eu não teria votado. Durante muito tempo, não entendia o impacto que aquilo tinha na minha vida. Hoje, acho que a gente entende o quanto a política está em tudo: interfere na produção cultural, de bens. Quando falamos em bancadas ideológicas, elas interferem em tudo na nossa vida: o que a gente come, as roupas que a gente veste. Salvo raríssimas exceções, a gente vive sistemas muito desequilibrados nessa relação política, principalmente no equilíbrio do masculino e do feminino. essa nova política surge a partir dessa consciência de que tudo é um ato político. quando eu compro, isso é um ato político. mas o meu voto também vai estabelecer o que eu compro, o que eu como, aquele conteúdo que eu vou consumir. tudo está correlacionado. por mais que a gente esteja vivendo um período muito tenebroso na política, acho que estamos compreendendo ela de forma diferente, não distante da nossa vida e da nossa rotina. aquelas pessoas que estão em brasília fazendo coisas que não sabemos exatamente o que são agora a gente vê quem são. e temos movimento incríveis de mulheres lutando pra trazer novas práticas, equilíbrio para esse cenário. parece que estamos vivendo um eterno retrocesso, mas é um movimento de transformação.”

Leia na íntegra

“Como salvar o futuro: Ações para o presente”, Cia. das Letras, 155 páginas, R$ 19,90
Disponível apenas na versão e-book

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