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Machismo, tá fora!

Ana Paula Oliveira fez história dentro e fora dos campos como bandeirinha. Batemos um papo com ela sobre as dificuldades, os desafios e a carreira

por Rodrigo Grilo Atualizado em 22 jul 2020, 18h08 - Publicado em 21 jul 2020 09h57
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(Clube Lambada/Ilustração)

azia pouco tempo que a ex-auxiliar de arbitragem Ana Paula Oliveira havia se tornado a primeira mulher da história da Federação Paulista de Futebol (FPF) a ocupar a presidência da Comissão de Arbitragem. Em uma de suas primeiras reuniões na sede da entidade, no início do ano, a paulistana de 42 anos nascida em São Miguel Paulista, zona oeste da capital, não resistiu ao dar de cara, assim que entrou na sala, com um boneco do Canarinho Pistola, o mascote da Seleção Brasileira de futebol. Sem cerimônia, depois de consultar os diretores ali presentes, ficou com ele no colo durante todo o papo, cerca de quarenta minutos. “Eu amo bicho de pelúcia, personagens da Marvel e sou fã do Taz, o demônio da Tazmânia. Sou uma mistura de mulher poderosa e menina sonhadora que cultua ícones de adolescência”, diz ela.

Filha do ex-ambulante Joel de Oliveira, já falecido, e da servente de escola Raimunda Lucineide da Silva Mata Oliveira, Ana Paula se mudou com a família para Hortolândia, interior de São Paulo, aos 5 anos. Ali, cresceu brincando nos pastos vizinhos da casa onde sua família morava, montando em cavalo sem cela, divertindo-se entre árvores e rios. Desde a infância, sempre teve coragem de indagar. “Eu era uma criança que gostava de saber os porquês”, afirma. Quase uma década antes de abraçar, aos 20 anos, a carreira como assistente de arbitragem e iniciar uma trajetória marcante nos campos de futebol mundo afora, Ana Paula vendeu laranjas, salgadinhos e, principalmente, ferramentas ao lado do pai, que se tornou camelô depois de perder o emprego na indústria têxtil. Ela tinha 11 anos, à época. “A gente convivia com apreensões de mercadorias feitas pela polícia. Trabalhávamos para ter o que comer, mas, às vezes, faltava”, recorda-se.  

Em casa, jogar bola com o irmão Alberto era uma brincadeira que desenrolava o meio-campo congestionado pela dureza da situação econômica e tabelava com a alegria. A natação viraria, aos 9 anos, uma obrigação à Ana Paula, que sofria de bronquite. Logo ela migraria para o atletismo, que teve de abandonar por causa de crises de asma em dias de competição. O vôlei e o kung-fu foram outras modalidades que a paulistana experimentou até o dia em que seu pai, juiz amador nas horas vagas, a levou para atuar como mesária em partidas de futebol em troca de R$ 5. Aos 14 anos, à época, a ideia de encarar um curso de arbitragem foi uma crescente em sua cabeça até se tornar um ofício. 

Zé Roberto, do Santos, batendo escanteio, ao lado da bandeirinha Ana Paula dos Santos Oliveira, durante jogo contra o São Paulo, pelo Campeonato Paulista de Futebol, no Estádio da Vila Belmiro.
Zé Roberto, do Santos, batendo escanteio, ao lado da bandeirinha Ana Paula dos Santos Oliveira, durante jogo contra o São Paulo, pelo Campeonato Paulista de Futebol, no Estádio da Vila Belmiro. (Renato Pizzutto/Grupo Abril)

Durante doze anos como assistente de arbitragem – ou, no jargão popular, bandeirinha – Ana Paula foi uma das pioneiras a atuar em campeonatos masculinos de futebol: foram três finais de campeonato paulista, uma de Copa do Brasil, atuou em todos os grandes clássicos do país, na Copa América, em 2006. Foi única a ter bandeirado em duas partidas de oitavas-de-final de Copa Libertadores da América, em 2005, e trabalhou na Olimpíada de Atenas, em 2004. Para além dos louros, colheu muito preconceito e machismo durante a caminhada. Fora dos gramados, experimentou a carreira artística – posou nua na Playboy e participou de duas edições do reality show A Fazenda, da Record –, formou-se em jornalismo e foi escalada como comentarista nas Copas do Mundo da Alemanha (2006) pelo SporTV, África do Sul (2010) pela MIX TV, do Brasil (2014) pela Fox e nos Jogos Pan-Americanos de Guadalajara (2011) também pela Fox. 

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(Rodrigo Corsi / FPF/Divulgação)

Desde 2010, quando encerrou a carreira como assistente de arbitragem, Ana Paula abraçou uma jornada de especializações para dar conta dos desafios que surgem a uma mulher que pretende ocupar espaços de poder em sociedades machistas. Deu expediente na Confederação Brasileira de Futebol, onde foi diretora-secretária da Escola Nacional de Arbitragem de Futebol (ENAF) e se tornou instrutora da Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) e da Federação Internacional de Futebol (Fifa). A cultura machista não aceita que belas mulheres possam ser capazes e inteligentes”, diz Ana Paula, a chefa, que gosta de escrever poemas e medita em casa todos os dias antes de ligar o computador e encarar, ainda que longe da companhia do boneco Pistola, mais uma reunião de planejamento para fazer história também no comando da arbitragem paulista.

Houve polêmica quando você foi anunciada como nova presidente da Comissão de Arbitragem da Federação Paulista de Futebol (FPF)? Vale lembrar que é a primeira vez que uma mulher assume tal posto na entidade.
Não. Depois que encerrei a carreira como árbitra assistente (2010), estudei comunicação, me formei em jornalismo e atuei em tevê e em rádio. Quando retornei à CBF em 2014 [foi coordenadora de instrução da Escola Nacional de Arbitragem de Futebol, alimentava o sonho de, como instrutora, voltar ao quadro da FIFA. E consegui, em 2016. Desde então, presidir uma comissão de arbitragem era o meu objetivo. O repertório de conhecimento sobre gestão de arbitragem que adquiri nos cinco anos em que estive na CBF me apontou parâmetros para que, hoje, eu adote uma gestão com uma filosofia própria na Federação Paulista. Foi a partir do trabalho na CBF voltado para o quadro feminino que, em 2016, depois de dez anos, uma mulher, no caso a árbitra assistente Nadine Bastos, voltou a atuar em uma final de campeonato masculino, a Copa do Brasil. Foi com solidez, um traço de renovação e ousadia que o meu nome surgiu para presidir a comissão de arbitragem de São Paulo. E, como eu já tinha um histórico, não houve rejeição dos clubes e dos árbitros aqui do estado.  

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Ano passado, a árbitra Edina Alves apitou no Brasileirão masculino. A última a ter a mesma chance fora a juíza Silvia Regina, em 2004. Por que esse hiato todo?
Quando entrei na CBF, em 2014, começamos um projeto de qualificação e valorização da mulher, para que pessoas como a Edina apitassem jogos masculinos. Sobre o passado, fala-se muito da exigência do teste físico, de mulheres sem qualidade técnica e candidatas que se destacavam no teste físico, mas não eram boas tecnicamente falando. E também houve equívocos: meninas apitando na 1ª divisão sem estarem totalmente preparadas. Eu vivi o auge da arbitragem feminina até 2009. Depois, houve uma queda e, mais pra frente, um resgate que culminou no fato de a Edina ter conquistado o direito de apitar no Brasileirão, ano passado. Há, ainda, uma menina de Santa Catarina, a Charly, e a Débora, de Pernambuco, que são muito boas, fazem parte do quadro da FIFA e atuam na primeira divisão masculina de seus estados. E teremos mais árbitras na linha de frente.  

Quantas mulheres, hoje, atuam na elite do futebol masculino paulista e quantas fazem o curso de arbitragem?
Três, uma juíza e duas assistentes. O nosso curso, que dura um ano e meio, conta, hoje, com 35 mulheres. 


“Hoje, o meu sonho é ver uma mulher, brasileira de preferência, bandeirar um jogo da Copa do Mundo masculina”

O teste que dá direito às mulheres apitarem jogos masculinos exige delas índices físicos semelhantes aos dos homens. Acha correto?
Antes, não. Mas agora acho. O futebol é muito veloz e requer que os árbitros corram entre 13 a 16 quilômetros por jogo. Quando as árbitras, que carregam uma cobrança enorme por serem mulheres, vão a campo amparadas por índices similares aos dos homens, ninguém irá questioná-las. Não há, hoje, quem possa duvidar da capacidade da Edina. Ela está lá por mérito e se alguém questionar o fato de arbitrar jogos masculinos o faz por puro preconceito. Concordo com a Simone de Beauvoir e outros pensadores com o fato de a mulher ter um tempo diferente pelo fato de não ser treinada para ser atleta tão cedo quanto o homem. Requerer delas índices inferiores aos dos homens, por outro lado, pode fazer com que eu, ao apitar um jogo masculino, esteja morta aos sessenta minutos da partida sendo que tenho mais trinta pela frente. Ou seja, eu posso colocar o jogo em risco. Por outro lado, se atinjo o índice masculino, estarei habilitada para atuar em alta intensidade. Isso nos legitima. Demorei a ser convencida de que, para atuar no [campeonato] masculino, a mulher tem de correr o mesmo que o homem. Mas comprovei isso quando fui para a prática. Hoje, o meu sonho é ver uma mulher, brasileira de preferência, bandeirar um jogo da Copa do Mundo masculina. 

Você chegou perto de atingir esse feito quando bandeirava?
Sim, bati na trave. Questões políticas não permitiram que eu fosse indicada a bandeirar na Copa do Mundo da Alemanha, em 2006. Eu havia encerrado a minha participação nos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004, como assistente revelação e passei a ser cotada para ir ao Mundial masculino. Hoje, diferentemente da minha época, não existe mais a questão de gostar ou não de uma profissional. Se a mulher passou em todos os testes, tem competência, qual a alegação para não permitir que ela atue na Copa? Se Deus quiser, estarei viva para ver uma mulher apitando uma partida do Mundial. E espero que eu esteja no time de instrutores do torneio acompanhando esse momento histórico. A Edina já atuou como árbitra de vídeo (VAR), na Copa do Mundo Sub-17 masculina, ano passado, e a Claudia Umbierrez apitou dois jogos nesse mesmo torneio e esteve, ainda, no Mundial Sub-15. Devagar, as mulheres estão ganhando espaço por competência, merecimento, e não por viés político de um dirigente que gosta dessa ou daquela.

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Ana Paula Oliveira durante a partida Atlético Mineiro e Fluminense, válida pelo Campeonato Brasileiro de Futebol, no estádio Mineirão.
Ana Paula Oliveira durante a partida Atlético Mineiro e Fluminense, válida pelo Campeonato Brasileiro de Futebol, no estádio Mineirão. (Eugenio Savio/Grupo Abril)

Como tem sido trabalhada a questão da sexualidade na sua gestão? As árbitras se sentem à vontade, amparadas, para expor sua orientação sexual?
Agora, sim. Historicamente, a arbitragem era comandada por militares. Ainda há muito coronel em presidência de comissões de arbitragem. É um traço cultural. Mas acredito que, nos últimos três anos, as mulheres não estão muito reclusas. Isso é fruto de uma gestão mais aberta para o mundo atual. Há árbitras e árbitros que assumem suas orientações sexuais e não vejo problema nisso. Para tanto, educamos e informamos os profissionais, para que não sejam alvejados e não exponham o seu trabalho e a marca que representam. Eu iniciei a minha gestão na Federação Paulista com uma palestra sobre assédio sexual e assédio moral, para marcar que são inadmissíveis. A pessoa com um cargo não pode achar que tem direito ao que bem entender. 

Poderia contar um episódio de assédio que sofreu quando bandeirava?
Acredito que todas as mulheres da minha geração sofreram assédio moral ou sexual. Eu sempre fui respeitada por jogadores e corpo técnico. Mesmo na época em que fiz a revista Playboy [foi capa, em 2007]. Alguns deles me consultavam, com muito respeito, para saber se poderiam enviar um exemplar para eu autografar. Mas lembro de um jogo, no qual trabalhei, no início da carreira, no estádio do [Esporte Clube] Primavera, em Indaiatuba. Era uma semifinal e o árbitro, da velha guarda. Quando entrei no vestiário, ele me olhou e disse: “Devo estar em fim de carreira mesmo; não estou valendo nada para a federação. Mandaram uma mulher para bandeirar para mim!”. O meu irmão, que me acompanhava, partiu para cima do árbitro e tive de separar a confusão. Durante o jogo, contribuí com o árbitro em algumas jogadas difíceis e, no final, ele me pediu desculpa. Fora isso, sempre houve quem me associasse a coisas como “está no cargo porque está saindo com A, B ou C”, “está fazendo tal jogo porque deve estar ficando com algum dirigente”. Essa ladainha é tão cansativa… Ainda assim, não julgo a pessoa que faz concessões para crescer na carreira; cada um usa a arma que tem. Eu nunca lancei mão de subterfúgios ilícitos para crescer. 


“Eu não sou alguém que quer aparecer a qualquer custo. Não sou polêmica. Sou direta. E pago caro por ter coragem de dizer o que penso. Sempre tive uma vida tranquila e vivi os meus dissabores sem alarde. Uma mulher que não tem medo de responder, fala o que pensa, é polêmica?”

Deixou de viver relacionamentos amorosos por causa na carreira?
Eu não deixava de namorar. Mas sentia que tinha um dom e que, por meio dele, eu poderia mudar a minha vida e a da minha família. No início da carreira, então, tive alguns affairs, mas não era nada tão sério, porque eu era casada com o futebol, com a arbitragem, e queria ser do quadro da FIFA, competente, respeitada. Tive de abrir mão de muitas coisas para estar focada e estudar. Não queria amar ninguém, para que essa coisa de amor não interferisse na minha performance, no meu rendimento no futebol. Eu era a novidade na arbitragem e o foco sempre esteve sobre mim. Por um bom tempo, então, eu devo ter magoado muita gente. Eu respeitava e sempre tive carinho pelas pessoas com as quais me relacionava e sou muito amiga de ex-namorados. Já teve quem me ligasse querendo dinheiro emprestado, quem pedisse para que eu conversasse com a esposa e por aí vai. 

Não chegou a casar?
Em 2009, já afastada do futebol, conheci um professor universitário e, no ano seguinte, passamos a morar juntos. A gente queria ter filho, mas ele estava terminando doutorado e emendaria um pós-doc. E eu estava tocando a minha carreira de jornalista como comentarista [no programa Alterosa no Ataque, da TV Alterosa, afiliada do SBT, em Belo Horizonte]. Aí resolvemos esperar, mas foi um erro. Vivemos uma relação muito bonita, que durou cinco anos. Somos amigos e sou muito grata a ele. Hoje, estou em uma relação, mas estamos passando por um processo de término. Enfim, tô pagando, agora, tudo o que eu fiz até os 30 anos, quando era uma garota (risos).

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(FPF/Divulgação)

A beleza de uma candidata a árbitra inevitavelmente irá se transformar em uma questão a mais para ela administrar na carreira?
Há quem ache que a gente é escalada para apitar se valendo da beleza. Eu tenho ranço em relação a isso. A cultura machista não aceita que belas mulheres possam ser capazes e inteligentes.

Certa vez, li uma reportagem sobre você cujo título era: “CBF coloca ex-musa para explicar a regra da mão na bola”. Além de a escolha ser no mínimo inapropriada, quem o fez teve a proeza de criar a categoria ex-musa.
Uma vez médico sempre médico, não é? Ele pode estar aposentado, mas não é ex-médico, concorda? É uma maneira depreciativa de dar uma notícia. O jornalismo é um mercado concorrido e, se valendo disso, o editor se questiona: “Qual a manchete com maior poder de venda?”. Li várias matérias boas sobre mim cujos títulos eram ruins. A desgraça é que eu também sou jornalista, sabe? Não é qualquer coisa, portanto, que adoça a minha boca. Enfim, uma vez musa sempre musa. Esse exemplo mostra como as pessoas têm tendência a depreciar sempre que possível. Eu não sou alguém que quer aparecer a qualquer custo. Não sou polêmica. Sou direta. E pago caro por ter coragem de dizer o que penso. Sempre tive uma vida tranquila e vivi os meus dissabores sem alarde. Uma mulher que não tem medo de responder, fala o que pensa, é polêmica?   

Pagou caro, também, por enveredar para a carreira artística?
Eu não me arrependo de nada, mas não pretendo participar de reality show ou posar na capa da Playboy novamente. Fiz a revista para ajudar minha família a comprar uma casa. E fui para A Fazenda porque o meu pai, que era fã do programa, pediu para eu aceitar o convite. No primeiro dia dentro do programa, o meu pai entrou em coma com um AVC. Uma semana depois, eu fui eliminada, o que fez com que eu pudesse cuidar um pouco dele e participasse do processo do fim de sua vida. Meu pai veio a falecer quatro meses depois, em 2010. Eu estive, então, no reality só de corpo presente, porque a minha cabeça estava no AVC dele.

Jonas e Pedrinho, do Santos, reclamando com bandeirinha Ana Paula dos Santos Oliveira, após ela ter anulado seu gol legítimo, durante jogo entre Santos X São Paulo, partida válida pelo campeonato Paulista de Futebol 2007, no Estádio da Vila Belmiro.
Jonas e Pedrinho, do Santos, reclamando com bandeirinha Ana Paula dos Santos Oliveira, após ela ter anulado seu gol legítimo, durante jogo entre Santos X São Paulo, partida válida pelo campeonato Paulista de Futebol 2007, no Estádio da Vila Belmiro. (Renato Pizzutto/Grupo Abril)

Qual a maior porrada que levou da vida?
A maneira como eu saí do quadro internacional da FIFA, em 2007. Logo depois da Playboy, eu sofri uma fratura por estresse nas tíbias direita e esquerda e não consegui concluir a prova de corrida. Foi um dos dias mais difíceis da minha vida, já que estava no ápice. Em 2008, eu retorno, faço outro teste e sou aprovada na avaliação física. Porém, não me devolveram o escudo da FIFA. Nunca saberei dizer o porquê. Prefiro seguir em frente e acreditar que tudo é um ciclo e o meu foi vitorioso dentro do campo de jogo. Mas lembro que chorei durante uma semana inteira.

Coincidência ou não, 2007 ficou marcado na sua trajetória esportiva depois de você anular dois gols legítimos do Botafogo contra o Figueirense, na semifinal da Copa do Brasil. O Botafogo foi eliminado, ao fim do jogo, e você virou alvo da fúria de dirigentes e torcedores do time carioca.
Aquele Botafogo x Figueirense foi, negativamente falando, o episódio mais marcante da minha carreira no futebol. Até então, aos 29 anos, o meu negócio era fazer um jogo e, depois, dormir pensando no dia seguinte. Eu não tinha ideia da dimensão do meu nome, do que eu representava. Fui perceber após aquela partida ao ouvir dirigentes do Botafogo falarem que “era lamentável uma mulher, que poderia estar naqueles dias, bandeirando um jogo”. Atacavam a mulher e não a profissional da arbitragem. Naquela mesma noite, depois do jogo, fui assaltada a mão armada. 

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“Há quem ache que a gente é escalada para apitar se valendo da beleza. Eu tenho ranço em relação a isso. A cultura machista não aceita que belas mulheres possam ser capazes e inteligentes”

Alguma relação com o seu desempenho durante a partida?
Me nego a pensar que houve relação ao que ocorreu naquele jogo. Mas recebi muitas ameaças depois desse episódio com o Botafogo e tive de deixar de fazer uma palestra no Rio de Janeiro sobre a capa que fiz na Playboy em função de ameaças. Sem contar o fato de o meu irmão quase ter sido agredido no trabalho e a minha mãe não conseguir entrar na escola onde trabalhava. Aí percebi que esse mundo não é o normal. E se o mundo estava às avessas, não seria eu quem estaria às avessas também, sabe? Espero que a gestão de uma mulher seja avaliada pelo trabalho dela, independentemente do local onde trabalha. Que me condenem ou elogiem pelos meus erros ou acertos. E não pelo fato de eu ser mulher. Mas percebo que isso é uma demanda nossa que ainda está em construção. Desde 2007, então, quando a minha família toda foi alvo de ameaças, decidi não me expor tanto. Nas redes sociais, me pauto pela cautela ao publicar fotos de mãe, sobrinha e etc.

Reescreveria algum capítulo de sua trajetória no futebol?
Teria processado o diretor do Botafogo [Carlos Augusto Montenegro, então vice-presidente de futebol do Botafogo] que me ofendeu [e chegou a declarar que Ana Paula “é totalmente despreparada. Não vejo mulher em Copa do Mundo, nem em decisão da Liga Europeia. Não vejo nas decisões mais importantes, mas colocaram uma mulher aqui, justamente contra o Botafogo”]. 

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(Rodrigo Corsi / FPF/Divulgação)

Qual foi o ônus de ter posado para a Playboy?
O Vampeta não deixou ser quem ele é quando posou para a G Magazine. O mesmo aconteceu comigo ao posar para a Playboy. Mas o homem pode tudo. Já a mulher que faz um nu artístico é taxada de prostituta, alguém que se vendeu. Eu não fui a nenhuma boate, não dormi com ninguém. O nu artístico que fiz para a revista, clicada pelo J.R. Duran, foi belíssimo. E continuei sendo a Ana Paula do interior, a filha da Dona Lu. Infelizmente, há pessoas que se aproveitam do momento de fama para “n” outras coisas. Já esperava que pudesse ser estigmatizada e que muitas pessoas fossem se valer do meu nu para justificar algumas ações. Acreditei e acredito na formação que recebi e na pessoa que sou. Sempre tive uma maneira de pensar, um engajamento político, social. Mas isso não interessa aos críticos. Nunca duvidei das minhas raízes e do que eu sou por piores e mais preconceituosos que tenham sido os comentários. E foram pesados.

Pode citar exemplos?
Invadiram as minhas redes sociais, o meu site, conseguiram o meu número de telefone… Agradeço à Abril, ao J. R. Duran, quem assina as fotos. Por meio do trabalho oferecido por eles, eu, que tinha um sonho de conhecer a Hebe Camargo e o Jô Soares, sentei no sofá dos dois, fui notícia no Jornal Nacional, no Fantástico. Aí pensava: “Não devo estar no caminho errado. Deve ter algo reservado pra mim que ainda não enxergo”. Hoje, olho para trás e agradeço. Fiz a Playboy para comprar uma casa para a minha mãe. Entrei n’A Fazenda para realizar um sonho do meu pai. Sou otimista. Levo porrada, choro e depois reflito como posso aprender. Não me apego a histórias ruins. A última vez que fui à análise, a terapeuta me perguntou: “Já se deu conta que você tem um sex appeal nato?”. Depois de eu dizer não, ela disse que eu deveria entender que nem todos que se aproximam de mim têm boas intenções. Nunca me achei uma mulher bonita, atraente, e acabei me tornando musa. Nem sempre o que vendem da gente é, porém, parte da nossa essência.  

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Em âmbito pessoal, qual o revés que mais a abalou?
A convivência com o meu pai. Ele foi o meu anjo e o meu demônio. E o protagonista e antagonista de sua própria história. Não vou te contar, mas a nossa história daria um livro. A gente reage a coisas e depois pensa: “Por que fui agressiva quando ouvi tal coisa? Por que me magoei tanto com algo tão banal?”. Enfim, fui atrás para tentar entender. E aí a gente dá conta como histórias que vivemos na infância, na adolescência, podem interferir na nossa vida adulta, positiva ou negativamente. Eu nunca me apeguei, no entanto, às passagens ruins. Quantas mulheres sofrem com violência doméstica? Eu sofri em casa. Vou me prender a isso? Não! O que interessa é como eu posso transformar em caramelo um momento tão amargo. Assim como muitas pessoas que passaram por isso, eu sei o que é, o que é vivê-la de perto. Não estou me colocando como vítima. Devemos enfrentar os nossos medos e seguir adiante sem expor aqueles que estiveram do nosso lado durante a batalha. Se não é possível controlar a história de outra pessoa, tento entendê-la. Enfim, a maneira como a gente encara a vida diz muito sobre quem somos. Enfim, essa foi a minha maior batalha pessoal.

Precisou de terapia?
Sim. Levei muito tempo para encará-la, mas a superei. Mas, procurei terapia após o falecimento do meu pai. Ela foi muito importante, pois me ajudou a enfrentar questões pessoais e aprimorar as minhas habilidades em conviver em cenários de adversidades, evoluir como pessoa e sempre olhar o lado positivo de cada situação vivida – seja em pesadelos reais, seja principalmente em sonhos que se realizaram.


“O homem pode tudo. Já a mulher que faz um nu artístico é taxada de prostituta, alguém que se vendeu. Eu não fui a nenhuma boate, não dormi com ninguém. O nu artístico que fiz para a revista, clicada pelo J.R. Duran, foi belíssimo”

Foi seu pai quem a apresentou à arbitragem, não?
Eu brincava de bola com o meu irmão, quando criança. Era aquela coisa, uma hora um é goleiro e, depois, o chutador. Mas foi por uma oportunidade de ganhar dinheiro – e não movida por uma paixão – que me aproximei de verdade do futebol. Meu pai era árbitro amador há muito tempo e a liga de futebol na qual ele apitava precisava de gente para atuar como mesário em troca de R$ 5 por jogo. Meu pai me convidou para ser mesária e eu aceitei pensando: “Se eu fizer oito jogos no fim de semana, levanto R$ 40”. Naquela época, a maioria dos árbitros era analfabeto, aprendia o ofício pela oralidade. Bom, depois de ser mesária dos 14 aos 15 anos, pedi para o meu pai me matricular em um curso de arbitragem, no interior, em 1994. Ao terminar o curso, decidi bandeirar, porque ganharia R$ 20 por jogo, quatro vezes mais do que como mesária. Passei a ser requisitada para tampar buraco em jogos: quando faltava um bandeirinha, eu assumia. Foi com o dinheiro que recebia do futebol amador que eu paguei, por exemplo, um curso de técnica de enfermagem.

Quando mergulhou de vez na carreira profissional como bandeirinha?
Em 1997, a Federação Paulista de Futebol abriu curso para mulheres. Fazia anos que não era permitida a inscrição de mulheres. Como eu já conhecia tudo da várzea, bandeirava e apitava, fui para o vestibular. Aos 18 anos na época, eu, que havia feito um curso de técnica de administração, trabalhava de auxiliar administrativa em uma empresa de RH. O curso da FPF acontecia à noite, às sextas-feiras. Saía então de Campinas, onde trabalhava, para fazer o curso na capital paulista. Eu não bebia, não fumava, não falava palavrão e a minha mãe me proibia de falar gírias. Era menina de interior mesmo. Me formei na FPF aos 20 anos. Três anos depois, eu estreei na 1ª divisão do campeonato paulista no jogo Internacional x Palmeiras, em 2009. O meu pai, olha que contraditório, foi contra eu fazer o curso de arbitragem.

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(FPF/Divulgação)

Como você reagiu a isso?
Questionei o meu pai, argumentando que fora ele quem me levou para esse meio. E ele insistiu dizendo que [arbitrar partidas de futebol] não era ambiente para mulher. E que me permitia atuar no futebol amador porque eu estava sempre ao seu lado. Ou seja, eu precisaria da chancela de um homem, ou ter sempre um homem ao meu lado. Meu pai demorou quase cinco anos para dizer que eu era uma boa profissional como bandeirinha.

O preconceito caminha perto da gente mais do que podemos imaginar.
O nosso país é muito machista. O Brasil é preconceituoso. Desde pequena, convivo com episódios do tipo e com a desconfiança por ser pioneira em um ambiente historicamente masculino. Algumas vizinhas de casa espalhavam que eu era uma mulher da vida, porque eu voltava do trabalho no carro de homens, na maioria das vezes, que me ofereciam carona. Aí, depois que parei de atuar no futebol, eu ganhei fama de gay. Então, conviver com machismo e preconceito é algo constante na minha vida. Agradeço a Deus por me dar força, maturidade e esclarecimento para lidar com isso tudo.

Você mora sozinha?
Então, meu amor, sou cidadã do mundo. Vivi por muito tempo em São Paulo, cresci em Campinas, morei em Minas Gerais, passei três anos no Rio de Janeiro trabalhando na CBF e, agora, estou morando com a minha mãe, em Sumaré, até eu me organizar para ficar de vez na capital paulista. Tenho um apartamento no Rio, mas pretendo alugar outro aqui em São Paulo. Por enquanto, estou feliz aqui [em Sumaré], porque saí da casa da minha mãe aos 20 anos e estou retornando agora, vinte e dois anos depois. Está sendo bacana esse convívio com ela; a gente nunca teve essa proximidade, porque eu sempre fui muito independente.

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