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5 narrativas dos índios Krenak, “os últimos Botocudos do Leste”

O tempo em que Deus andava no mundo e outras histórias da tradição oral

por Ailton Krenak, em depoimento a Eduardo Ribeiro Atualizado em 18 set 2020, 13h52 - Publicado em 20 jul 2020 09h52
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(Clube Lambada/Ilustração)

povo Krenak, do grupo linguístico Macro-Jê, habitou a Mata Atlântica no Baixo Recôncavo Baiano, foi historicamente expulso do litoral pelos Tupí e deslocou-se em direção ao interior, alcançando os vales dos rios Doce, Mucuripe e Jequitinhonha. Subdividia-se, em sua ancestralidade, em pequenos grupos que, apesar de características culturais semelhantes, dispunham de delimitações territoriais bem definidas por rios, montanhas e florestas. Autodenominados de “Burum”, receberam a alcunha de “últimos Botocudos do Leste” dos portugueses no final do século 18, em alusão aos botoques auriculares e labiais. Pelos Tupí, foram referidos “Aimorés” e, internamente, também se chamam por Grén ou Krén.

“Krenák” era o nome do líder do grupo que comandou a cisão dos Gutkrák do rio Pancas, no Espírito Santo, no início do século 20, assentando-se à margem esquerda do rio Doce, em Minas Gerais, entre as cidades de Resplendor e Conselheiro Pena, numa reserva de quatro mil hectares que ali concentrou, no fim da década de 1920, outros grupos Botocudos: os Pojixá, Nakre-ehé, Miñajirum, Jiporók, e Gutkrák, do qual os Krenaks se separaram.

A espiritualidade dos Krenaks é centrada na figura dos Marét, habitantes dos planos superiores, e dos espíritos encantados de seus mortos, os Nanitiong. Os Marét são os ordenadores dos fenômenos naturais. Outras entidades são os espíritos da natureza – os Tokón –, responsáveis pela eleição dos seus intermediários na Terra, os xamãs, com os quais mantêm contato durante os rituais. As almas encarnadas adquirem-se a partir dos quatro anos de idade, quando são tradicionalmente implantados os primeiros botoques. A alma principal deixa o corpo durante o sono e, quando se perde, o corpo adoece. Antes da morte, a alma principal morre dentro do corpo da pessoa. Existem outras seis almas no corpo que o seguem até seu túmulo. Caso suas necessidades de alimento e luz não sejam atendidas, essas almas podem ameaçar a aldeia. Passados alguns anos, espíritos de luz vêm buscá-las.

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As ilustrações dessa reportagem são resultado da pesquisa do ilustrador indígena Gustavo Caboco, um Wapichana que se debruçou sobre a etnia Krenak, para essa matéria.

A seguir, compilamos mais relatos tradicionais do povo Krenak.

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(Gustavo Caboco/Ilustração)

Como era a Vida

Há milhares de anos, surgiu no mundo um homem sozinho. Caminhando de um lado para o outro, por muito tempo, esse homem sozinho olhava sua sombra. Pensava se não existia outra pessoa igual a ele. Por outros lugares, uma mulher andava também sozinha, se via nas águas e pensava: será que não tem ninguém igual a mim também?

Passaram a andar, a procurar alguém igual a eles. E assim foi por muito tempo, até que um dia, depois de muitos anos andando, se encontraram, ficaram assustados, mas depois de tanto tempo, ficaram juntos. E desse encontro tiveram quatro filhos.

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(Gustavo Caboco/Ilustração)

Deus andava nas Aldeias

Contam os antigos burum que, quando o Deus terminou a criação do mundo, ficou um tempo vivendo entre suas criaturas. Depois, decidiu se retirar, foi embora deixando os burum se virarem aqui na Terra. E suas criaturas, então, foram pelo mundo afora, caçando para comer, coletando para fazer abrigo e brincando nos campos da criação. Um jardim neste mundo deixado para as criaturas, que podiam tudo, menos ver o seu criador cara a cara, pois ele tinha resolvido se abster do paraíso terrestre. E o tempo, que nem era contado ainda, foi passando assim mesmo. Passou. Passou. Passou. E o Deus teve saudade das suas criaturas. Pensou, então, o Deus:

– Como estarão minhas criaturas, que deixei na Terra um dia?

Resolveu que ia visitar suas criaturas, que tinha deixado na Terra um dia. Mas viu que podia ser perigoso, afinal havia muito tempo que não se viam. Podiam ter mudado muito, não reconhecer o criador. Decidiu que viria disfarçado, na forma de um tamanduá. Sim, seria um tamanduá chegando às aldeias para ver como suas criaturas estavam se virando aqui na Terra. Fez os preparativos para a visita às aldeias, e veio ver suas criaturas.

Enquanto isso, nas aldeias, tudo corria em paz. Mulheres e crianças no pátio da aldeia, com as malocas todas enfeitadas para ficar bonito o dia, e os homens correndo nas trilhas em busca de alguma caça para levar para a casa, quando avistaram um tamanduá.Todos armaram-se da maior alegria e jogaram-se na aventura da caçada ao bicho. Correria e gritos dos jovens que saiam para as primeiras caçadas seguidos de seus tios, que já empunhavam laços de cipó trançado especialmente para essas ocasiões, prontos para a captura, pois levariam a presa para o festival na aldeia onde todos poderiam se alegrar com a chegada dos caçadores. Enlaçaram o tamanduá e, juntando as tralhas do acampamento de caça, seguiram de volta para casa. Agora levando o kujãn no laço, seguiam cantando. Cantavam alegres os jovens, que iam à frente dançando e balançando o dorso, como faz o tamanduá.

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Foram cantando e dançando até pegar a trilha da aldeia. Chegaram. Todos gostaram de ver o bicho no laço, bonito com seu pêlo brilhante, as listras formosas marcando seu perfil.

Os homens puseram o kujãn na sombra, aos cuidados das crianças que agora rodeavam o bicho, cheias de curiosidade. “Isso mesmo que eu queria!”, pensou o tamanduá, enquanto se acomodava entre as palhas do chão. Estava bem confortável ali, debaixo daquela casa coberta de palha de buriti.

Já anoitecia quando os homens passaram pelo terreiro da casa onde estava o kujãn e jogaram uma canastra de cupins, ordenando:  “Comida para o kujãn, crianças” – disseram eles, enquanto seguiam para suas casas.

Só dois meninos permaneceram na oca onde estava o kujãn, pois tinham notado algo de especial naquele bicho que seus tios caçadores ainda ignoravam. As outras crianças brincaram um pouco por ali, mas logo foram procurar outras aventuras pelo terreiro das casas. Rotí, o menino mais velho, e Catí, o menor, já haviam percebido que se tratava de visita ilustre na aldeia. Não iam sair dali até descobrir o mistério. Então, pegaram a canastra de cupins e foram para perto do kujãn, para ver o que ia acontecer…

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“Veja, irmãozinho” – disse Rotí, enquanto examinava a canastra de cupins que os homens deixaram para alimentar o tamanduá.

“É… pensam mesmo que ele vai comer formiga e cupins” – respondeu Catí, chegando para perto do kujãn.

“Olha, kujãn, você não precisa comer isso, nós sabemos que você não é um bicho” – disse o mais velho.

“É… vamos buscar comida boa para você, avô!” – disse o menino menor.

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Apresentaram tigelas de mel e cará para o kujãn, que sentou-se e agradeceu o alimento. Isso animou muito os meninos, que agora já pegavam suas esteirinhas de sentar para rodear o kujãn enquanto comia.

“Olha bem, nossos tios não podem saber que você está aqui. Vamos fazer segredo, pois eles pensam que você é mesmo um tamanduá” – disse Rotí.

Decidiram que seria assim. Enquanto o kujãn estivesse ali, os meninos sabidos iam cuidar dele, trazer seu alimento preferido, cará e mel, jogando fora a comida que os adultos buscavam para o tamanduá. E quando estivessem a sós com o kujãn, eles iam ouvir histórias e aprender com o avô, que era como Rotí e Catí chamavam o kujãn, já sabendo quem ele era.

– Olha, kujãn, nós sabemos quem você é! Desde a sua chegada que a gente está te vendo mesmo. E decidimos te proteger dos caçadores, pois eles planejam te matar para a festa da aldeia.
E foi o primeiro dia da visita do Criador na aldeia, e ele gostou do que viu.

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Naquela noite os meninos não dormiram. Tiveram as primeiras revelações do kujãn sobre a sua visita, com histórias do tempo em que viveu com os burum. Quando falava com os meninos, kujãn tomava a forma de gente mesmo, igual aos burum, seres humanos. E isso era bom para os olhos dos meninos, pois sentiam que era mesmo o Criador visitando a aldeia. Folgaram com as histórias da criação, aprenderam novas cantigas e também como curar algumas doenças.

Pela manhã do segundo dia, os homens trouxeram mais formiga e cupins para o tamanduá. Rotí e Catí trocaram por tigelas de mel e cará, e tiveram que despistar os outros para continuarem a aprender com o kujãn coisas como fazer as casas, construir canoas e organizar festas. Era muito bom ficar junto do avô ouvindo suas histórias, e o tempo passou voando como vento. No dia seguinte seria a festa da aldeia, e todas as caças iam para a panela.

“Kujãn, nossos tios pensam que vão assar você amanhã, estão todos muito animados com a festa. Mas nós dois já sabemos o que fazer” – disse Rotí, o menino mais velho.

“É!” – exclamou o menino menor. “Avô, sua visita à aldeia foi muito boa para nós, e então, o que achou de seus filhos que deixou aqui na Terra?”

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Kujãn, que tinha passado a noite contando histórias, ouviu o alarido que vinha do terreiro da aldeia, e respondeu para os meninos: “Vocês são mais ou menos assim” – enquanto gesticulava com o dedo polegar, balançando a mão em movimento de leque, de modo a alternar entre os sinais de ‘positivo’ e ‘negativo’ – “assim”. “Assim, assim!”

Nisso, foi subindo o barulho na aldeia, com gente gritando para todo lado, pois Rotí e Catí haviam tocado fogo nas cabanas dos fundos para dar chance de fuga ao tamanduá, que tinha pegado a trilha de saída da aldeia e sumia pelas colinas que recebiam os primeiros raios de Sol.

Lá do alto da colina, de lugar seguro para uma parada, kujãn olhou o pátio da aldeia em polvorosa. Se iluminou todo de raios incandescentes do Sol, fez sinal para seus filhos e seguiu dançando e cantando. E foi a manhã do terceiro dia, com tudo começando de novo nas aldeias daqueles índios.

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(Gustavo Caboco/Ilustração)

Cabeça na terra

Krenak significa “cabeça na terra”. Os krenaks colocam a cabeça sobre a terra por um minuto, e, em seguida, dançam. Conta a tradição:

Havia um casal de índios passando por um caminho quando, de repente, a índia passou mal, para dar à luz uma criança. O índio colocou a índia sobre o barranco deitada e saiu correndo desesperado, pedindo ajuda aos “Kraí”. Nessa época, homens trabalhavam na construção da estrada de ferro que ligaria Vitória a Minas Gerais. Eles vieram e começaram a ajudar no parto. Ao nascer, a criança saiu e bateu a cabeça na terra.

O índio desesperado gritou:
— Agrãna tondone kren no nák! (O bebê bateu a cabeça na terra!)

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Um dos homens pediu ao índio que repetisse o que ele havia dito:
— Agrãna tondone kren no nák! (O bebê bateu a cabeça na terra!)

Juntando as palavras, o homem disse:
— Essa estação terá o nome Krenak.

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(Gustavo Caboco/Ilustração)

A Morte do Capitão

Com sabedoria, o Capitão Krenak acompanhava seu povo. Ele se deitava cedo e, à noite, os espíritos contavam-lhe sobre as coisas ruins que aconteceriam nas aldeias. E sabiamente ele as afastava. Dia seguinte, ele reunia o seu povo. Dizia:

— Vem muita doença ruim para vocês! Fui avisado pelos Marét. Mas, não tenham medo. Eu já afastei tudo!

A aldeia inteira se alegrava e dançava. Os krenaks, junto do velho Pajé, acendiam fogueira para aquecê-lo, e durante horas todos o acariciavam, passando a mão com ternura sobre seus cabelos…Traziam-lhe carne assada para agradecer-lhe! Erê-hê! Erê-hé!

E o tempo passou, findaram-se suas energias. Krenak chamou seu povo:

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— Eu vou morrer, mas não quero que vocês me enterrem.

Façam um jirau e me coloquem em cima dele. E acendam uma fogueira para mim. Quero que vocês continuem gostando de mim. Se lembrando de mim. Passando a mão pelo meu cabelo. Que eu sempre vou olhar por vocês!

Veio outra lua e a alma principal do velho Krenak deixou seu corpo. Todos se juntaram no seu kieme e acompanham suas seis esposas no choro ritual. As mulheres cortaram o cabelo em sinal de luto. Seu corpo foi colocado sobre um jirau, conforme seu desejo, sentado olhando para a frente, para a pedra do Krenak. Acenderam a fogueira e fizeram roças. E dias e noites os krenaks rezavam, mantendo o fogo aceso, acariciando-o eternamente, conversando com ele. Sua carne foi secando, secando e seu rosto murchou. Na face, apenas os bonitos olhos continuavam vivos. Seu corpo não se desfez. Para o povo krenak, ele continua vivo, mantendo sua promessa de olhar por eles. Daí sua força e resistência.

Como é costume, seu filho Muim o substituiu. Sábia e inteligentemente ele fora preparado para ocupar o lugar do velho pajé. Muim passou a colocar os enfeites nos jovens. A comandar os guerreiros na defesa da terra, a proteger o povo. E passará para seus descendentes!

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(Gustavo Caboco/Ilustração)

A loca de pedra

Antigamente, havia uma pedra que tinha um papagaio encantado, que três índios descobriram. Esses índios eram o capitão, o cacique e o pajé. Eles estavam procurando alimentos, quando viram uma pedra alta, e foram lá vê-la.

Chegando lá, tinha um cipó dependurado na pedra. Eles subiram pelo cipó e a pedra ficou “baixa”. Então, eles alcançaram a loca. Eles foram entrando, lá era muito grande, e no canto havia um papagaio. Eles voltaram e chegaram no acampamento deles e falaram para os seus parentes que eles haviam encontrado um local mais seguro, que dava para esconder todo o povo do ataque dos brancos.

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Todos os índios foram para a loca de pedra. Nesta época, não havia território indígena demarcado.

O local onde é hoje a aldeia Krenak, era antigamente denominado Minhãn Rat. O governo entrou por Minhãn Rat e nomeou “Dallo” Cristino para reunir os índios da região neste local. Desde menino, “Dallo” Cristino sabia falar Krenak. Ele saiu pela mata procurando os índios. Nesse momento, os índios já estavam fugindo dos brancos. Ele saiu pela mata e encontrou um dos índios e perguntou onde estavam os outros. O índio não disse nada, foi então até o capitão e contou que um KRAI estava procurando o local onde os índios se escondiam. O capitão mandou o índio conversar com o “Dallo” Cristino e mandá- lo ir até o esconderijo para conversarem. Quando ele chegasse perto da pedra, se ele tivesse com a polícia, era para ele assoviar; caso o chefe estivesse sozinho, era para ele chamar na língua indígena.

Como só foram o “Dallo” Cristino e o índio, o capitão foi ao seu encontro. Aí o chefe falou para o capitão que o governo man­ dou demarcar a terra, que era para os índios ficarem sossegados. Fez uma reunião com os índios de Panças e de Cuparaque para todos irem para Minhãn Rat. Os índios também queriam ir para lá. Então o governo demarcou a terra que hoje se chama Krenak. Depois de um tempo, “Dallo” Cristino queria conhecer o antigo esconderijo dos índios. Eles contaram que se encontrava no local da pedra e que lá tinha um papagaio. Lá também tinha ossos de peixe, tatu, de muitas caças que provavelmente serviram de ali­ mento para o papagaio.

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O capitão morreu e o seu irmão assumiu o seu lugar. “Dallo” Cristino queria buscar o papagaio. Pegou uma gaiola e chamou dois índios, e seguiram, mas o irmão do capitão disse que eles iam perder a viagem. Mesmo assim, eles foram. Chegando lá, a loca da pedra tinha “crescido”. Aí o índio falou:

—Takruk! (A pedra cresceu!)

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Leia também nossa entrevista com Ailton Krenak, clicando aqui.

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